quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Um “quodlibet” antiliberal

Sidney Silveira
Da mesma forma como recebemos muitos emails de incentivo ao trabalho desenvolvido neste espaço — de pessoas de variado nível de conhecimento filosófico (do professor de filosofia ao neófito), de distintas orientações políticas e até de diferentes credos religiosos —, chegam-nos igualmente uns poucos murmúrios, de gente bastante invocada com o combate travado no Contra Impugnantes. São pessoas que estão espumando de raiva e comentam, aqui e ali, alguma bobagem em forma de detração às ocultas; mas, como o mundo é pequeno, os resmungos dessas vozes medrosamente escondidas acabam por chegar-nos. A estes, em particular, advirto que o combate aqui travado é, na prática, similar ao que os medievais chamavam de questões de quodlibet (expressão latina que significa algo como “qualquer que seja”). Em síntese: na universidade medieval, qualquer um que fosse podia, em público, interpelar o filósofo ou mestre, e nesta interpelação muitas vezes havia duas etapas bem definidas: a impugnatio, que enumerava um conjunto de dificuldades; e a determinatio, na qual o mestre dava, em sua resposta, um sentido de unidade às diversas questões propostas. O detalhe é que essas questões de quodlibet, diferentemente das chamadas questões disputadas, eram feitas de improviso, e nelas muitas vezes se formulavam teses sem a mínima ordem lógica, causando com isto grande dificuldade para o interlocutor, que precisava usar de seu gênio para responder às proposições — sempre sob a coordenação de um moderador escolhido a dedo na universidade. É muito conhecido para os estudiosos da obra tomista o quodlibet que lançava sobre o Aquinate a seguinte indagação:

Mestre, o que prende com mais força o coração do homem: o rei [e as leis por ele promulgadas], a verdade [com o seu esplendor], o vinho [de natureza inebriante] ou a mulher [com a sua beleza]? Pois, no 3º Livro de Esdras (um apócrifo do Velho Testamento), está escrito: ‘A verdade não é grande e mais forte que tudo?'. No entanto, o vinho altera completamente o homem, e o rei consegue obrigá-lo a se expor até ao perigo de morte, que é, entre todas as coisas, o que há de mais dificultoso. E que dizer das mulheres, se estas conseguem dominar até mesmo os reis?”.
(Quodlibet XII, q. 14, I)

Da estupenda resposta do inigualável gênio de Santo Tomás — certamente para uma apalermada assistência —, podemos falar noutra ocasião. Por ora, o que nos interessa é lançar a esses espumantes de raiva um desafio: em vez de falar pelos cantos (loquatur in angulis), com perigo para as suas próprias almas, dado que a detração, filha da inveja, é pecado mortal, apresentem respostas em forma de argumentos em contrário às impugnações já feitas nestes poucos meses de blog:

1- Do ponto de vista psicológico: o liberalismo parte da falácia da consciência individual autônoma. Isto o leva, entre outras coisas, a forjar uma idéia totalmente equivocada de liberdade.
2- Do ponto de vista gnosiológico: o liberalismo sempre acaba por optar pelas posturas idealista e/ou imanentista, ainda que, aqui e ali, sob o disfarce realista;
3- Do ponto de vista artístico: o liberalismo não consegue ultrapassar o mais tosco esteticismo, para o qual o estatuto da arte subsume-se ao “bem fazer”, à poiesis, a um "bom artesanato" com a matéria com que labora o artista. Nada há, além disso. Do belo como um dos transcendentais do ser, restou a casca material;
4- Do ponto de vista econômico: o liberalismo transforma os meios em fins, dado o materialismo em que soçobra: a liberdade de ação dos agentes econômicos (denominada “livre mercado”) não pode ser limitada por nenhuma forma de amarra — seja política, moral, religiosa, legal, etc. Ou seja: a lei do mercado é, na prática, a lei das leis, e a reprodutibilidade dos bens materiais é o must em uma sociedade, como dizia Von Mises. Além do mais, o liberalismo econômico é uma teoria política disfarçada, dado que os liberais “econômicos” vivem a dizer como o Estado deve ou não deve ser;
5- Do ponto de vista político: o liberalismo é afim ao anarquismo, e a simples menção à palavra “Estado” causa os mais dramáticos engulhos estomacais num liberal, que fez da liberdade um ídolo (embora confunda “liberdade” e “ato de escolha”, ou seja: não saiba discernir o que é a liberdade daquilo que faz a liberdade). Partindo desta idéia equívoca de liberdade, os liberais pretendem reduzir o Estado ao mínimo minimorum, desconfiados que são do poder (desconfiança que também, miopemente, erra o alvo, como afirmamos neste outro mini-artigo). Neste horizonte de questionamentos, o Estado já se transformou em uma mera superestrutura estanque no meio da sociedade; e também num "adversário" dos indivíduos (já mostramos, também, que a própria noção de “indivíduo”, para os liberais, é errônea e não tem base metafísica). O resultado prático acaba por ser o oposto do que prega a ideologia: uma tirania da pseudo-maioria sob o nome de “democracia” — e “pseudo” porque manipulada por elites compostas por minorias intelectualizadas e com objetivos políticos muito bem definidos (não raro, forjados em sociedades secretas ou “discretas”). A verdadeira liberdade, num ambiente tirânico com esta conformação democratista, transformar-se-á em escravidão. Do ponto de vista da Igreja: escravidão do erro e do pecado, que perdem as almas;
6- Do ponto de vista moral: o liberalismo é relativista na raiz, na medida em que acolhe a tese de que a consciência individual "autônoma" é intocável por qualquer instância exterior a ela. O liberalismo, com isto, inaugura a oposição radical entre indivíduo e coletividade. De um lado, a moral transforma-se em categoria coletiva (ou transcendental) extrínseca e oposta às vontades individuais; e de outro, transforma-se em moral privada, independente da moral pública.
7- Do ponto de vista católico: o liberalismo é uma heresia CONDENADA SOLENEMENTE pelo Magistério da Igreja;
8- Do ponto de vista histórico: o liberalismo é identificado — desde os seus primórdios até os dias atuais — com os ideais maçônicos;
9- Do ponto de vista lógico: o liberalismo é uma quimera do pensamento mágico que se opõe à lógica aristotélico-tomista, cujo fundamento é realista. Veja-se bem que não confundimos lógica com gnosiologia, porque na perspectiva de Santo Tomás — que subscrevemos integralmente! — a lógica ocupa um lugar importante, mas subsidiário. E, ao passo que, na perspectiva tomista, a filosofia é de cunho metafísico-gnosiológico, na perspectiva moderna (e liberal), a filosofia é tão-somente gnosiológica e inverte a relação ser/conhecer.
10- Do ponto de vista legal: o liberalismo não ultrapassa o contratualismo. O seu “império da lei” é formalista e superficial, pois a lei, no liberalismo, transformou-se em expressão da vontade da maioria, deixando de ser uma régua da razão que mede as ações e valores humanos de acordo com bens objetivos inamovíveis, tanto para os indivíduos como para as sociedades. E inamovíveis porque integram radicalmente a nossa humana natura e a das coisas com que nos relacionamos.

Tudo isso, E MUTO MAIS, é facilmente encontrável nos textos do blog. E vale destacar algo muito importante: com extensa argumentação e copiosa documentação das fontes! Trata-se, neste sentido, de uma impugnatio bem melhor do que as dos quodlibets da Idade Média, pois os argumentos e suas premissas estão “mastigados” para os oponentes. Sabemos, é claro, que
detratar é muito mais fácil do que apresentar argumentos filosoficamente válidos. Mas, ainda assim, peço aos "espumantes" que não fiquem nas borbulhas: venham para o campo aberto e façam o favor de nos corrigir, se estivermos em erro. São mestres em sua matéria; então respondam a este quodlibet sem o sardônico sestro de esconder-se por trás da detração, que sempre encobre uma covardia. Não precisam citar os nossos nomes, mas apenas refutar-nos as idéias. É muito feio murmurar; ademais, o murmúrio sempre vaza.