segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Santo Tomás: belicoso ou pusilânime? Nem um nem outro

Sidney Silveira
Belicoso: 1. Que tem ânimo aguerrido; guerreiro. 2. Habituado à guerra. 3. Que incita à guerra. 4. Preparado para a guerra. 5. Revolto, agitado (Fonte: Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa).

Após ler as diferentes — e elementaríssimas — acepções que definem o vocábulo “belicoso”, neste e noutros dicionários da Língua Portuguesa, vejamos agora quais são, de acordo com Santo Tomás, as precondições para haver guerra (no caso, uma guerra justa), já que todas essas acepções de “belicoso” nos levam, óbvia e necessariamente, ao vocábulo “guerra”. Vejamo-las:

1ª. Que a guerra seja de defesa.
2ª. Que os que são atacados de fato mereçam e devam sê-lo, pois, se não o forem, a situação posterior será muito pior do que a atual. Por ex.: É lícito e necessário fazer guerra contra alguma máfia ou contra traficantes e bandos de malfeitores, para que estes não se disseminem e não encontrem caminho livre para dar vazão aos seus delitos no seio da comunidade.
3ª. Que haja reais possibilidades de vitória.
4ª. Que o resultado presumível da guerra não seja uma situação pior do que a anterior à guerra.
5ª. Que o propósito da guerra seja promover o bem comum e evitar o mal.
6ª. Que — no caso de uma nação — a guerra seja levada adiante pela autoridade legítima, ou seja: uma pessoa isoladamente (ainda que “respaldada” por sua própria
consciência individual) não pode e não deve ter o poder de declarar a guerra, mas sim os governantes legitimamente constituídos, qualquer que seja o regime político em voga.

Desses e de inúmeros outros argumentos conclui Santo Tomás que guerrear, em si, não é pecado. E diz ainda mais: não raro, guerrear se torna ocasião de desenvolver virtudes — como, por exemplo, as da prudência e fortaleza, tão necessárias ao bom combate. Ora, é fato inegável que, em nossa vida, muitas vezes somos levados pessoalmente a guerrear, premidos pelas circunstâncias, para defender-nos física ou moralmente. Contudo, mesmo admitindo o Doutor Angélico tal casuística em relação à guerra (da qual enumeramos uma parte, apenas), podemos porventura cognominá-lo “belicoso”, ou seja, alguém de ânimo beligerante, habituado à guerra ou que a incita? Ora, a primeira das precondições acima descritas já responde à pergunta: só é lícita a guerra de defesa! E foi esta, justamente, a guerra que travou Santo Tomás em toda a sua obra, e não só nos
12 livros “Contra” que escreveu: uma luta em defesa da fé. Portanto, amigos, muito, mas muitíssimo cuidado com gente que, tendo tido um contato “estético” ou talvez “lingüístico” com a obra do Doutor Comum da Igreja, faz tudo para jogar água em sua fervura, que é a fervura da fé, a fervura da defesa da verdade e do conseqüente combate aos erros, quando é possível e preciso refutá-los... De fato, Santo Tomás não foi de maneira alguma belicoso, mas muito menos foi ele um pusilânime, como o são justamente os que querem diminuí-lo, mitigá-lo, fazer dele um bom-moço, um tacanho, um tímido que tem mais medo de desagradar aos homens do que a Deus. Para prová-lo e de forma cabal, noutra ocasião transcreveremos trechos de sua obra nos quais ele fala sobre paz e sobre guerra. E os transcreveremos ipsis verbis, para que um ou outro malicioso ou detrator não venha a dizer ou insinuar novamente por aí, pela internet, que estamos querendo passar por mestres na Igreja, eu e o prof. Nougué. Ou dizer e/ou insinuar coisa ainda pior.

Pelo que foi dito, conclui-se que guerrear para o bem e pelo bem — de acordo com o Aquinate — é uma grande virtude, assaz distinta dos pecados da
contumélia (já tratado noutro texto), da rixa e da sedição. A propósito, uma rápida busca em alguns sites liberais basta para constatarmos o que é, segundo o seu parecer, o bem e, sobretudo, o bem comum, o qual para o Angélico é todavia o objeto formal próprio da guerra...

Santo Tomás realmente leu e compreendeu autores não-cristãos e pré-cristãos. Quem tal afirmou está corretíssimo!! Seja leigo ou então uma
autoridade eclesiástica. Mas muita atenção: essa afirmação acertada não implica que Santo Tomás os tenha aplaudido ou silenciado naquilo em que contrariavam a fé e a Igreja, que é sua depositária e defensora, e muito menos que se tenha calado perante os erros filosóficos. Sendo assim, Orígenes, Avicena, Averróis, Avicebrão, Platão, Aristóteles e outros foram por ele refutados e criticados acerbamente, principalmente naquilo em que as suas teses contrariavam a fé. E nas coisas em que tais pensadores acertaram, é óbvio que não contrariaram a fé — pois a fé é a própria verdade, revelada por Deus (veja-se que o presente texto, em particular, é dirigido a católicos, ou seja: àqueles que aceitam, por fé, essa premissa elementar do catolicismo).

A que interesses servem pessoas que, conhecendo a verdade, pretendem transformar um grande santo, de coragem ímpar — e cuja obra foi toda para a fé e em defesa da fé —, num acomodador que silencia culpavelmente perante os erros (falaremos sobre o silêncio culpável segundo Santo Tomás em outra ocasião), é algo que não alcançamos totalmente, embora o vislumbremos.

Por fim, vale dizer que, na caminhada por este vale de lágrimas que é a miserável vida humana após
a queda do nosso primeiro pai, há cicatrizes de guerra honrosas e outras extremamente desonrosas. O que as qualifica, de uma ou outra forma, é o que move uma pessoa à guerra, e não o tamanho das cicatrizes. Neste contexto, a pergunta que se impõe é a seguinte: que cicatrizes queremos levar para o dia em que o próprio Senhor nos interpelará e perguntará: Que fizeste com o talento que te dei?
Àqueles que não multiplicaram o talento recebido, a resposta já foi dada pelo próprio Cristo (em. Mt. XXV, 28-29). Sendo assim, com esse trecho do Evangelho gravado no coração, rezemos muito e peçamos orientação a Deus para ter o discernimento e sobretudo para receber a Graça, a qual nos impedirá de defender valores em si contrários às verdades a que a razão, por sua natureza, pode chegar — assim como valores em si contrários à verdade revelada. Mas isto sem jamais nos esquecermos do seguinte: a razão é preambula fidei, o que significa que, se defraudarmos a razão naquilo por que, dadas as suas potências, ela alcança as verdades mais elementares e universais, certamente acabaremos por defraudar a fé...