sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Bonifácio VIII: o Papa mais caluniado da história (I)

Bonifácio VIII


Sidney Silveira


A morte de Bonifácio VIII (1235-1303) marca a um só tempo o fim a Idade Média e o começo do lento e progressivo declínio da Cristandade[1].Marca a derrota da visão de mundo fundada na Sagrada Escritura — e defensora da ordenação das coisas materiais às espirituais — para uma concepção de total independência dos governos das nações com relação às leis eclesiásticas.


Em resumo, o sacrílego atentado sofrido por Bonifácio VIII em 1303, na cidade de Anagni (tramado pelos Colonnas, influente e terrível família romana), é um símbolo da sublevação do absolutismo nacionalista contra o universalismo cristão — coluna vertebral da política do Medievo —, como afirma o historiador Ricardo García-Villoslada. E mais do que isto: é o emblema de uma significativa mudança de vetor nas sociedades, que se consolidará nos séculos imediatamente posteriores ao pontificado de Bonifácio VIII, com a crescente perda do poder político e espiritual da Igreja:


Ø do sentido de transcendência para o de imanência;


Ø da fé para o indiferentismo religioso e, em seguida, para a apostasia;


Ø do espiritualismo para o sensualismo materialista;


Ø da moral ascética baseada no Evangelho para um hedonismo libertário de grande virulência antieclesiástica;


Ø do sentido coletivista — que visava ao bem comum — para um individualismo crescente, que descambará séculos depois nas democracias liberais;


Ø do objetivismo ontológico para o subjetivismo psicológico;


Ø do clericalismo fundado na supremacia espiritual do Papado para o laicismo de Estado, em suas várias conformações.


Em verdade, Bonifácio VIII é o último personagem de um tríptico papal que retrata fielmente a mentalidade do Medievo, no que tange às relações entre a Igreja e o Estado:


· o reformador Gregório VII (1020/1085) ensinara, em seus Dictatus Papæ, que o Romano Pontífice tem poder para eximir os súditos de qualquer nação da obediência a leis iníquas, e portanto da obediência a governantes tirânicos. Ele deu exemplo disto ao excomulgar e depor ninguém menos que o terrível e poderoso Henrique IV, sacro-imperador Romano-Germânico. “Em nome de Deus Onipotente, Pai, Filho e Espírito Santo, e investido do Seu poder e autoridade, proíbo ao rei Henrique IV, que com inaudita soberba se lançou contra a Igreja, governar o reino da Itália e da Alemanha. Desobrigo a todos os cristãos do juramento de fidelidade que lhe prestaram e mando que ninguém lhe sirva como rei”. Em resumo: por ordem do Papa, devido às leis tirânicas, injustas e anticristãs vigentes naquele império, nenhum católico poderia obedecer ao rei, o que na prática foi o mesmo que depô-lo. Mas a história desse acontecimento extraordinário do pontificado de Gregório VII não é para este breve texto.


· Inocêncio III (1160/1216), cujo pontificado é um símbolo do que de mais alto e luminoso produziu a Idade Média — no tocante à consolidação da hierarquia sócio-política em que o Papa estava no cume da pirâmide, tendo abaixo de si príncipes e imperadores — postulara o seguinte: pode o Romano Pontífice, ratione et occasione pecatti, depor o rei e coroar outro, tendo em vista o fim último a que se destinam tanto os indivíduos como as sociedades: Deus.


· Bonifácio VIII propugnara que o poder espiritual da Igreja, dada a superioridade e transcendência do fim a que visa, que é o mesmo para todas as criaturas, pode e deve julgar o poder material se este se desvia, mas não pode ser julgado por ele. E que todas as criaturas racionais (de quaisquer religiões!) estão subordinadas ratione peccati ao Romano Pontífice.



Preâmbulos da crise bonifaciana


Como se verá adiante, não se trata de uma despótica teocracia universal que se imiscua em tudo — inclusive no que não lhe é devido intervir — como acusam historiadores modernos que ignoram completamente o que é a Igreja. Quem estuda os documentos do Magistério desses Papas sabe muito bem que os reis se submetiam ao Vigário de Cristo nos negócios que poderiam trazer danos espirituais aos indivíduos e às sociedades. E vale dizer que tal “poder” papal não era absoluto, no sentido de autocrático: o Romano Pontífice tinha acima de si a Cristo-Rei, cabeça invisível atuante misticamente na Igreja e no mundo — e neste contexto os reis, príncipes e imperadores eram os responsáveis pela salvaguarda do bem comum político, que formalmente não poderia divergir nem contrapor-se ao bem comum universal, cujo poder emana do alto.


O Papa e o imperador eram, pois, as duas cabeças que em harmonia governavam o hierarquizado mundo medieval, e se tal harmonia nem sempre foi um fato durante a Idade Média, ela foi sempre uma aspiração e um modelo para as sociedades e para os indivíduos. Um exemplo disso? O citado Henrique IV, ao ser excomulgado e deposto por Gregório VII, humilhou-se diante desse Papa, beijando-lhe os pés e penitenciando-se para receber a absolvição e não perder a coroa. Mas, homem tremendo que era, não se humilhou porque quis (como demonstram cabalmente as suas ações ao recuperar o cetro), mas sim porque os seus súditos simplesmente obedeceram ao Pontífice e deixaram de lhe prestar obediência. E o mesmo se pode dizer do rei Felipe II, de França, excomulgado por Inocênio III por abandonar a sua esposa, a linda dinamarquesa Ingeburga, para contrair segundas núpcias, à revelia do Papa, com Inês de Meraine. Na ocasião, durante 12 anos, quando Felipe chegava a qualquer cidade francesa os sinos não tocavam. Até que o rei obedeceu ao Papa, voltou para Ingeburga e foi perdoado, tirando a França da interdição que, por ordem do Pontífice, pesava sobre o país. O mesmo Inocêncio III mandou o rei espanhol Afonso IX separar-se da primeira e da segunda esposas, por razões de consangüinidade. O que Afonso IX fez.


Os Papas medievais sempre fizeram questão de deixar claro que o poder humano e o divino não se contrapõem, e portanto as leis eclesiásticas e as civis não têm entre si nenhum antagonismo, mas complementaridade; assim, quando a Igreja atuava na ordem temporal, tinha em vista o bem sobrenatural. Para explicar isso grandes teólogos do período lançaram mão de uma analogia: sendo a alma ontologicamente superior ao corpo, a Igreja, que governa as almas, será superior ao Império e a qualquer Estado, que governa a ordem material. Entre o poder do Papa e o do rei haveria, pois, relação semelhante à que existe entre o sol e a lua: esta tem expressivo influxo em seu âmbito, mas reflete a luz que recebe do sol — princípio superior.


Em resumo, o Papa exerceria a sua autoridade sobre o rei de suas formas: a) de modo direto nas coisas espirituais; e b) de modo indireto nas coisas materiais atinentes à moral e aos costumes (e, portanto, à ordem política), ensinando, admoestando, exortando, corrigindo, condenando, intervindo quando necessário.


Pois bem. Feito este preâmbulo, comecemos por dizer que a derrocada de Bonifácio VIII resultará historicamente, em primeiro lugar, no absolutismo monárquico. Um absolutismo de conformação extremamente nacionalista, na medida em que as nações, cada vez mais desvinculadas do Romano Pontífice, perderão o sentido de irmandade transnacional sob a liderança da Igreja que caracterizava o Medievo, malgrado as lutas pelo poder inerentes à condição humana no presente estado[2].


Neste contexto, o embate entre Bonifácio VIII e Felipe, o Belo, rei de França, representa o encarniçado cabo-de-guerra entre duas concepções políticas antagônicas. De um lado, a sociedade hierarquicamente organizada na qual as leis positivas têm três propósitos fundamentais: tornar os homens virtuosos, como afirmava Santo Tomás; preservar o bem comum; e, acima de tudo, conduzir os homens a Deus, tendo por instrumento a Igreja — custodiadora magisterial da verdade do Evangelho, divinamente revelada. De outro lado, sociedades libertárias tendentes ao caos e à entropia, nas quais as leis representam, no melhor dos casos, um útil — porém incômodo — obstáculo à liberdade humana, confundida tristemente com a vertigem de poder oriunda da cupidez dos homens. Lei positiva sem vínculo com a lei eterna, e por esta razão fundadora do humanismo político.


A propósito, nas sociedades pós-medievais desvinculadas da hierática sombra do Magistério da Igreja, a lei logo descambará num formalismo jurídico (com a tentativa de recuperar alguns aspectos do Direito Romano, ainda na época de Bonifácio VIII, como veremos) e não mais buscará tornar os homens melhores nem ensiná-los o bem, mantendo a ordem pela obediência à lei enraizada nos costumes, como concebia Aristóteles, mas apenas tentará frear a desordem com placebos legislativos; não buscará preservar o bem comum, que, deturpado em seus princípios, se transforma numa quimera irrealizável; e não se ordenará à lei divina como a seu fim, dado o apartamento entre os planos material e espiritual, defendido, já na aurora do século XIV, por Dante Alighieri no livro De Monarchia, que permaneceu por mais de seiscentos anos no Index Librorum Prohibitorum, por óbvias razões magisteriais.


Estamos, pois, no vértice entre dois mundos: o católico e o liberal. Este último, como afirmara o ensaísta brasileiro José Guilherme Merquior, só se tornou historicamente possível graças à perda, no terreno ético-político, da noção cristã de Summum Bonum e conseqüente dissolução da idéia de bem comum. Neste contexto, o atentado que, em 1303, o já idoso Bonifácio VIII sofre de homens a quem podemos muito bem chamar de inimigos da Igreja representa “a violenta reação da carne às duras exigências do espírito cristão”, frase que pegamos de empréstimo ao Pe. Álvaro Calderón — utilizada no livro A Candeia Debaixo da Alqueire para demarcar a oposição entre a Idade Média e o Renascimento, sendo este último norteado por um espírito de apostasia e revolta.


Por razões que veremos adiante, a agressão ao Papa também serve como símbolo do ataque à unidade da Igreja, nas perspectivas política e doutrinária. E as conseqüências disto se consumarão, totalmente, no decorrer dos séculos:


Ø no plano político, a fratura que se deu no atribulado pontificado de Bonifácio VIII produziu, de forma efetiva, os seus frutos dois séculos mais tarde, quando com a reforma luterana começou a perder-se a unidade cristã entre as nações sob a égide da Igreja. E como os fatos históricos afloram na ambiência que lhes serve de esteio, vale aqui dizer que a reforma luterana teria sido impossível sem os questionamentos ao poder papal que cresceram em progressão geométrica após o pontificado de Bonifácio VIII;


Ø no plano doutrinário, os frutos só estarão definitivamente maduros com a consagração do laicismo político no seio da própria Igreja, sete séculos depois de Bonifácio VIII com o Concílio Vaticano II. Na ocasião, o liberalismo é entronizado intra Ecclesiam, e, com relação a este ponto, faça-se um importantíssimo registro: não fosse a bula Unam Sanctam, de Bonifácio VIII — impecável do ponto de vista doutrinal e também em sua formulação —, a separação entre a Igreja e o Estado na forma da lei certamente teria acontecido séculos antes, e não somente no século XX! Durante séculos a Unam Sanctam foi a incômoda pedra no sapato do espírito liberal que primeiramente atacou no terreno político, depois dentro da própria Igreja.


Ditas estas coisas, frisemos que uma das táticas do modernismo que dominou a hierarquia da Igreja e os seminários a partir do Vaticano II é recontar a história eclesiástica na perspectiva da nova mentalidade: ecumenista, laicista, antiapostólica, moralmente laxa, humanista, naturalista, etc. É denegrir, sem o menor escrúpulo, os feitos da Igreja no passado e a memória de personagens — clérigos ou seculares — que a defenderam nos planos material e espiritual. Neste contexto, como diz o citado Álvaro Caldeón, o pedido de desculpas do Papa João Paulo II pelos “erros” do passado não é propriamente um mea culpa perante o mundo, mas sim um culpa vestra, ou seja: a culpa seria da supostamente autocrática Igreja medieval, que quase nada teria a ver com essa Igreja tão comodamente adaptada ao espírito mundano, com essa Igreja cuja mentalidade foi modificada durante o seu longo pontificado, com espalhafatoso aplauso midiático do mundo. O pedido papal de desculpas não é (reiteremos!) a assunção de uma culpa histórica, mas a acusação à Igreja do passado, cujos pressupostos foram “desconstruídos” por João Paulo II ao longo de vinte e sete anos, na teoria e na prática.


Pois bem, essa tática de recontar a história a partir de novas premissas eclesiais é aplicada de forma pertinaz a Bonifácio VIII — sem dúvida o Papa mais caluniado da história —, seja por inimigos internos ou externos da Igreja. E, dado o fato de que muito poucas pessoas recorrem às fontes primárias para sustentar os seus juízos históricos, até entre defensores da Tradição da Igreja hoje se encontram detratores deste notável Papa, infelizmente.


Assim, de Bonifácio VIII se diz — entre outras coisas — o seguinte:


Ø Foi ele o articulador da abdicação de seu antecessor, Celestino V. A propósito, antes de tudo vale dizer que Celestino V, ao tornar-se Papa, era um idoso monge apoiado por fanáticos franciscanos autodenominados de “espirituais”, adeptos do messianismo milenarista do herético monge cisterciense Joaquim de Fiore — condenado solenemente no IV Concílio de Latrão. Veremos em que sombrias circunstâncias se deu a canonização de Celestino V como Santo Confessor.


Ø Encarcerou o Papa renunciante de forma cruel, injustificável e insana, levando-o a morrer em condições desumanas — sob tortura física e psicológica. Alguns chegam a dizer que a cabeça de Celestino V teria sido partida ao meio, por ordem de Bonifácio VIII.


Ø Foi politicamente culpado pela ida do Papado a Avingon, e por quase criar um cisma.


Ø Proclamou documentos — como as bulas Clericis laicos e Una Sanctam — que se imiscuíam nas coisas seculares indevidamente, em razão de sua má-compreensão das relações entre a Igreja e o Estado.


Ø Foi um tirano opressor da liberdade política em várias nações européias.


Ø Exterminou cruelmente uma cidade inteira (Palestrina), levando à morte mulheres e crianças.


Ø Defendeu uma hierocracia universal, entendida de forma errônea por alguns cientistas políticos contemporâneos como “augustinismo político”.


Ø Dante o colocou no “inferno” em sua Comédia, e por razões justíssimas. A isto, mais à frente, além de explicarmos que Dante (cuja concepção política do livro De Monarchia foi condenada solenemente pela Igreja) não tem poder algum para colocar quem quer que seja no inferno real, mostraremos como o ódio do poeta a Bonifácio VIII se transformara numa patológica monomania. A propósito, como sói acontecer com os acusadores, com os caluniadores.


Veremos se estas e outras acusações contra Bonifácio VIII têm algum fundamento histórico, tomando por base três obras:


a) Storia di Bonifazio VIII e de’ suoi tempi, famosa biografia de Luigi Tosti publicada em 1846. A obra foi reeditada recentemente e traz abundantíssima quantidade de fontes primárias. Ela pode ser lida por inteiro, numa antiga edição, neste link;


b) Historia de la Iglesia Medieval, do mencionado Ricardo García-Villoslada, escrita em meados da década de 50 do século passado. A propósito, Villoslada é também um pesquisador que traz à luz abundantes fontes primárias, sem as quais qualquer juízo histórico vira quase uma boataria;


c) Lives of the Popes. The Pontiffs from St. Peter to John Paul II, de Richard MacBrien, insuspeito professor de teologia da Universidade de Notre Dame. Digo “insuspeito” por ser um modernista da melhor cepa.


Por uma questão pedagógica, separaremos a nossa análise pelos tópicos acima, aos quais acrescentaremos outros, de acordo com a necessidade da explicação. Comecemos, pois, pela primeira dessas acusações e sigamos a ordem delas — sempre partindo dialeticamente de uma interrogação.


1- Articulador da abdicação de Celestino V?


Os acusadores imputam a Bonifácio VIII o crime de ser o malicioso articulador da abdicação de Celestino V — movido por ambições pessoais e políticas. Mas em que fontes se baseiam? Que documentos sustentam um juízo histórico tão terrível?


(continua)


__________________________

1-Não concordamos com os historiadores que pretendem levar à Idade Média até a queda de Constantinopla (1453), ou ao Descobrimento da América (1492), ou ainda à rebelião da reforma luterana (1517), pois estes acontecimentos são insuficientes para demarcar a mudança de mentalidade que é o divisor de águas entre as épocas medieval e moderna. Neste ponto estamos totalmente de acordo com Ricardo G. Villoslada, para quem o terminus ad quem da Idade Média é 1303, com a morte de Bonifácio VIII, embora divirjamos deste autor no que diz respeito ao conceito de hierocracia universal aplicado a este Papa.


2- Somos compelidos a registrar que as lutas intestinas pelo poder são encontráveis em absolutamente todas as épocas, desde a Antiguidade mais remota. E, como católicos, cremos que assim será até o final dos tempos, devido à mancha do pecado original. Na Idade Média, no entanto, havia uma contraforça espiritual que punha um freio (na medida do possível, é claro) à degradação humana: a Igreja e seu Magistério.