segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Ainda René Girard


A beleza será inútil, se o esplendor da verdade
não a adornar com o seu brilho próprio.

(São Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus)

Sidney Silveira
Na esteira do Magistério e de todos os grandes doutores da Igreja, o notável São Francisco de Sales ensina-nos que o bem, quando considerado em si mesmo, excita o amor — primeira e fundamental paixão da alma. E se esse bem amado está ausente, provoca-nos o desejo; se, sendo desejado, julgamos poder obtê-lo, estamos na esperança; se o imaginamos impossível, damos o primeiro passo para cair no desespero; quando o possuímos no presente, sentimos alegria. Em contrapartida, o mal, quando considerado como algo contrário a esse bem que amamos, nos desperta o ódio; se o mal está presente, nos vêm o temor; se é inevitável, nos traz tristeza; se nos afeta, advêm-nos a ira; se podemos reagir a ele de alguma forma, a vontade nos instila o desejo de vingança. E por aí se vai...

Todas essas realidades são empiricamente comprováveis. Basta, para tanto, que olhemos para nós mesmos com atenção, quando acossados por algumas dessas paixões, e busquemos a razão fundamental de se manifestarem elas em nós. Em todas veremos que está, na raiz, o amor. Não um amor abstrato, mas um amor real, vivido por um sujeito real em relação a algo real. E esse amor é especificado pelos objetos a que se dirige: se é um amor exagerado de um homem a si mesmo, engendra o orgulho, e este acarreta a inveja e todas as suas filhas: murmuração, detração, ódio, tristeza pelo bem alcançado pela pessoa invejada e alegria com o seu infortúnio. Se é um amor a Deus e ao próximo pelo bem intrínseco destes (amor de benevolência, como dizem os grandes tratadistas de teologia moral), engendra-nos o movimento de efusão em direção ao bem da pessoa ou do objeto amado. Neste caso, queremos simplesmente doar-nos. É o êxtase — ato culminante do verdadeiro amor. Amor que abrasa as nossas potências superiores: inteligência e vontade.

Que diferença para a pressuposição de René Girard de que só desejamos algo como imitação invejosa de um bem pertencente a outrem! Se a tese dos doutores da Igreja está certa, tal imitação girardiana só poderá ser a fonte do desejo nos casos dramáticos de alguém que, por orgulho, só consiga ver o próprio bem. Mas isto é patologia gravíssima — e fazermos do ser humano “normal” esse egolátrico é, para dizer pouco, o fim da picada. O pobre Girard (Deus sabe se tomando a si mesmo ou não como parâmetro) sequer chegou perto do amor como ato livre da vontade que vislumbra, entende e quer o bem em si mesmo. E dos graus desse amor, então, nem se fala a que distância ele está! Ao lermos alguns dos principais pressupostos de sua tese, vemos também que, se alguma vez esse homem leu acerca da distinção entre amor sensual, amor racional e amor espiritual, jamais pôde entender essas realidades. E, como mostramos noutra ocasião, se levamos a sua tese às últimas conseqüências, o amor ao próximo e, sobretudo a Deus, torna-se formalmente impossível.

Voltemos a São Francisco de Sales e ao que diz num trecho do já citado Tratado do Amor de Deus. “Nossa alma é espiritual, indivisível, imortal; entende, quer e, livremente, é capaz de julgar, discorrer, saber e ter virtudes, coisas em que se assemelha a Deus. (...) Se bem que o estado da nossa natureza humana não seja agora dotado da saúde e retidão original que o primeiro homem possuía, e que, pelo contrário, nós estejamos grandemente depravados pelo pecado, sempre sucede que a santa inclinação de amar a Deus sobre todas as coisas nos fica, como também a luz natural pela qual conhecemos que a sua suma bondade é amável sobre todas as coisas”. Para o grande santo, o amor a Deus (dádiva do próprio Deus!) — amor formalmente impossível, na tese de Girard — é o que dignifica sobrenaturalmente todos os amores e desejos humanos.

Mas, ainda no plano natural, o amor (ato da vontade), segundo o autor do igualmente estupendo Introdução à vida devota, é a primeira complacência da alma humana no bem — bem este que é percebido pelos sentidos, entendido pela inteligência e, por fim, querido pela vontade. Nesta ordem. Em tal contexto o amor precede o desejo, pois não há como desejar o que não amamos sob nenhum aspecto; precede a esperança, porque não se espera senão o bem que se ama; precede o ódio, porque não odiamos senão na medida em que algo é impedimento para o bem que amamos e queremos; etc.

Em linguagem cristã, o nome técnico para o “desejo mimético” de Girard é veleidade. E o é por ser especificado pela inveja, sendo esta absolutamente incapaz de gerar algo além de um anelo fútil.

Entre inúmeras outras razões, o problema da tese de Girard é que não parte de um bem ontológico externo (os entes do mundo real, percebidos, entendidos e queridos por diferentes potências da forma entis humana), mas de um suposto “bem” psicológico interno (a pressuposição de que a posse de algum bem nos torna melhores aos olhos dos outros).

Não admira que um sujeito desses agrade a muitos liberais, que costumam negar o mundo exterior para afirmar a sua consciência individualautônoma”.