Espaço destinado a combater a insidiosa e multiforme cultura liberal, que tem entre as suas raízes mais daninhas: uma falaciosa noção de liberdade humana; a idolatria — implícita ou explícita — da consciência individual; a separação entre natureza e moral; a contraposição entre Estado e indivíduo; a dissolução da Religião em categorias morais sem fundamento metafísico; a perda da noção de bem comum político.
terça-feira, 31 de janeiro de 2012
"A paz d'Alma", livro disponibilizado nos blogs "A Grande Guerra" e "Alexandria Católica"
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Breve aviso
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
Autoridade de Santo Tomás (V): a doutrina comum da Igreja!
Crítica do sedevacantismo (IIa)
Dando continuidade à série sobre o sedevacantismo [cuja primeira parte se pode ler em Crítica do sedevacantismo (I)], publica-se agora o primeiro de quatro artigos do sacerdote italiano d. Curzio Nitoglia sobre o assunto, mais especialmente sobre a corrente sedevacantista que defende a Tese de Cassiciacum (da qual o próprio d. Curzio fizera parte).
Não concordo precisamente com tudo o que diz o sábio sacerdote; é pública minha adesão à tese do Padre Álvaro Calderón exposta em seu A Candeia Debaixo do Alqueire, com a qual o artigo que se publica hoje não converge plenamente. Isso porém pouco importa aqui, e por triplo motivo:
1) antes de tudo, porque tal não convergência não me parece insuperável;
2) depois, porque, ainda que o seja, o artigo do sacerdote italiano não deixa de ter grande profundidade e sabedoria teológicas (de parte da qual, como se verá, me valerei na série sobre a política segundo Santo Tomás de Aquino);
3) por fim, porque, para os efeitos desta série, o artigo de d. Curzio vale sobretudo por ser o que poderia constituir seu título: “Um chamado à prudência”.
Leiam-no e comprovem por si mesmos.
_______________
A “TESE DE CASSICIACUM” É
AINDA ABSOLUTAMENTE CERTA?
DON CURZIO NITOGLIA
Velletri, 6 de julho de 2008
http://www.doncurzionitoglia.com/TesIncerta.htm
[Tradução: Gederson Falcometa]
Advertência
Tendo abandonado – publicamente – as conclusões juridicas da “Tese de Cassiciacum” (7-8 de dezembro de 2006) para chegar ao “Sim Sim Não Não” em Veletri (7 de janeiro de 2007), senti-me, desde então, no dever de explicar as razões da minha mudança. Trabalhei este pequeno escrito há muito tempo e ponho aqui o “resumo” como “uma hipótese de Veletri” [1]. Eu refleti – informalmente já a partir do fim de 2003 (e desde o final de 1990, as consequências práticas e jurídicas que alguns “guerardianos” tiravam da “Tese de Cassiciacum” me preocupavam e me deixavam com dúvidas). Só em agosto de 2007 (depois de longa – talvez demasiada longa – ponderação) deixei, também formalmente, a “Tese de Cassiciacum”, à qual aderira por muitos anos. Eu não queria publicar esta página, para não pertubar ainda mais os fiéis, falando de questões “tremendas” (comparáveis ao dogma da “Predestinação”) e que superam a capacidade dos não “especialistas” em teologia (tais argumentos podem ser abordados “na escola” e não pregados aos simples fiéis)[2], mas cada vez mais fiéis me têm aconselhado a tornar pública as razões da minha decisão, sendo eu um sacerdote e pois uma pessoa “pública”, para evitar todo equívoco. Somente com esta intenção vou divulgar este escrito, sem nenhuma pretensão, nem ameaça de apostasia para quem não está de acordo. Lembrem-se (sobretudo para mim e para os outros) as palavras de Dante:
domingo, 22 de janeiro de 2012
Bonifácio VIII: o Papa mais caluniado da história (III)
Sidney Silveira
2- Assassino de Celestino V?
Aquilo que Santo Agostinho chamara de “cidades do amor próprio”, nas quais os homens são carniça do demônio, representa o terrível influxo do pecado original sobre as sociedades, sem nenhuma exceção. Em resumo, há uma gota da baba de Caim — fundador da primeira cidade, segundo o relato bíblico (Gn, IV, 17) — em todas as Pólis, desde a perda do Éden. Esta premissa teológica de Agostinho n’A Cidade de Deus nos servirá como ponto de partida para a análise das relações entre a Igreja e o Estado durante o pontificado de Bonifácio VIII, ou seja: em meio à grave insurreição do poder temporal contra o eclesiástico que fundou a Idade Moderna, espiritual e politicamente.
Diz o bispo de Hipona:
“A soberba é o que de pior e mais condenável pode haver, pois busca o recurso das escusas mesmo para os pecados mais evidentes. Assim fizeram os nossos primeiros pais. Eva disse: “A serpente me enganou e eu comi”; e Adão disse: “A mulher que me deste por companheira deu-me o fruto e eu o comi” (Gn, III, 12-13). Jamais o pedido de perdão! Jamais a busca do remédio! Embora, como Caim, não tenham negado o que fizeram, a sua soberba os fez descarregar sobre o outro a responsabilidade pelas más obras. A soberba da mulher culpou a serpente, a do varão culpou a mulher” (Santo Agostinho, A Cidade de Deus, XIV, 15, 1).
O relato de Agostinho nos mostra que, com o pecado, se perdeu no ato a inocência original — e as cidades fundadas pelos descendentes dos primeiros pais da humanidade não poderiam deixar de ser o reflexo dessa dramática queda: ímpias, idólatras, sensuais ao extremo, orgulhosas, cúpidas, revoltadas contra Deus e suas leis. Somente com Cristo e o Seu Corpo Místico, que é a Igreja, se poderá instituir em terreno sólido a Cidade de Deus, que, ao contrário da cidade do amor-próprio, trará o único remédio capaz de encaminhar as almas ao céu.
Com este quadro podemos ter clara a idéia de que o papel da Igreja nas sociedades é de mestra, médica e juíza: mestra porque ensina a partir dos tesouros espirituais da Sagrada Escritura e do Magistério participado por Cristo, ou seja, educa repetindo o que Cristo ensinou e mandou ensinar (ergo euntes docete omnes gentes, Mt. II, 18); médica porque com sua doutrina e com os sacramentos traz para o corpo social a sanidade e a santidade, frutos da graça, sem as quais não haveria freio à maldade e à perdição; juíza porque, à luz dos ensinamentos divinos, tem o critério infalível para julgar se os indivíduos e as sociedades encaminham-se a Deus ou ao capeta. Neste contexto, todas as suas intervenções legislativas e/ou coercitivas no âmbito do Estado serão sub ratione peccati, com a autoridade de Cristo — e, portanto, daquele que até o Juízo Final estará em seu lugar (Viccarius Christi): o Papa.
Estes são, pois, os principais vetores da política católica consagrada solenemente no Magistério de Bonifácio VIII e no que se lhe seguiu, até a derrocada doutrinal ocorrida no último quartel do século XX. Tendo-os bem claros no horizonte, prossigamos contando a sua apaixonante e trágica história.
Vimos, com o historiador Luigi Tosti, que a abdicação de Celestino V, ao contrário do que dizem os detratores de Bonifácio VIII, se deu motu proprio, ou seja: foi ele o único Papa da história a renunciar por vontade própria, publicamente expressa[1]; il gran rifiuto, nos versos de Dante. Agora vejamos o que sucedeu imediatamente após este acontecimento de grande importância para a história da Igreja.
Ricardo Villoslada afirma que é absolutamente fantástica e legendária a frase que Celestino V teria dito ao Cardeal Gaetani: Intrabis ut vulpes, regnabis ut leo et morieris ut canis. “Entrarás como raposa, reinarás como leão e morrerás como cão”. E o diz porque, como historiador honesto, verificou a inexistência de fontes seguras que confirmem tal “profecia” — que, a propósito, os fatos contrariarão eloqüentemente, se contemplados à luz da fé. É bem provável que esse suposto dito de Celestino V tenha sido mais uma das incontáveis invenções espalhadas contra Bonifácio VIII por seus inimigos, e os motivos deste parecer serão expostos adiante, no decorrer dos textos desta série. Seja como for, os vinte e quatro cardeais reunidos na véspera do Natal de 1294 elegeram o Cardeal Gaetani, que assumiu o nome de Bonifácio VIII.
Ao contrário do que sucedera com Celestino V, o rei Carlos II não conseguiu reter Bonifácio VIII em Nápoles. E mais: viu-se compelido a logo acompanhá-lo a Roma, que é o lugar do Papado por excelência, de onde Pedro ex cathedra espraia a sua autoridade a todo o orbe cristão. E aos 4 de janeiro de 1295 a comitiva pontifícia deixou o Castel Nuovo, em Nápoles — onde reinava Carlos I, tendo até então o Papa anterior sob o seu domínio político — e partiu para Roma, onde Bonifácio VIII recebeu a tiara pontifícia.
De acordo com os principais historiadores e cronistas, a primeira medida do novo Papa foi revogar os privilégios que Celestino V havia outorgado de forma pródiga (e, em alguns casos, irresponsável), até que se organizasse administrativamente a Cúria. Assim, prebendas, nomeações altamente duvidosas de bispos e outras concessões e benefícios foram suspensos. Outro problema não menos importante, e muito mais imediato, apresentou-se ao recém-empossado Papa: a ameaça de cisma crescera vertiginosamente após a renúncia de Celestino V, com a grita generalizada por parte dos “espirituais” franciscanos: sátiras e memoriais blasfemos contra Bonifácio VIII foram imediatamente espalhados, tanto por esses “espirituais” como por partidários da família Colonna, que começaram uma campanha sedevacantista dizendo aos quatro ventos que Celestino V continuava Papa, e Bonifácio VIII era um usurpador[2].
A tentativa desses homens era simplesmente convencer o simplório Pedro de Morrone de que não perdera a tiara pontifícia, malgrado a sua cabal renúncia. Bonifácio VIII deu, então, o primeiro sinal do governante que seria: estando a Igreja em perigo de cindir-se por um cisma movido por algumas facções de fanáticos, ordenou prudencialmente a Morrone que não se afastasse dele, pois o velho eremita, influenciável que era, poderia servir às ambições dos Colonnas e dos radicais adeptos da pobreza absoluta. Nas palavras de Bartolomeu de Lucca, uma fonte coetânea, Morrone ficou retido num mosteiro “in custodia non quidem libera, honesta tamen” e o cronista Villani, outro autor contemporâneo, nos informa que o ex-Papa morreu “in cortese prigione”.
Pois muito bem, o velho Morrone, provavelmente com a ajuda dos “espirituais”, desobedecendo ao Papa fugiu do mosteiro com o propósito de encaminhar-se à Dalmácia ou à Grécia. Sabedor disto, Bonifácio VIII enviou emissários que, no meio do caminho, frustaram a fuga de Morrone e o conduziram ao Castelo Monte Fumore, onde ficou confinado “em honesta reclusão”, segundo Villoslada, levando uma vida contemplativa até falecer em 19 de maio de 1296.
Neste ponto, Villoslada, Tosti e Mcbrien — os três historiadores que nos têm servido como fio condutor desta história — são unânimes: não possuem o menor crédito as absurdas lendas, inventadas pelos adversários de Bonifácio VIII logo após a morte de Morrone, de que o ex-Papa havia sido assassinado por ordem de Bonifácio, tendo o crânio partido ao meio ou perfurado com uma lâmina. Tais calúnias, como adiante veremos, foram fomentadas pelos sequazes de Felipe, o Belo, rei de França, ainda em vida de Bonifácio, mas também após sua morte, no mais escandaloso e infame julgamento post-mortem de que se tem notícia na história da Igreja.
Quanto às supostas “condições terríveis”, que teriam sido impostas a Morrone, paira a mesmíssima sombra da detração contra Bonifácio — a sombra negra e irresponsável da calúnia. As coisas se passaram de outra forma. Luigi Tosti, baseando-se em diferentes testemunhas oculares que escreveram sobre a reclusão de Morrone no Castelo Monte Fumore (como por exemplo o cronista Giacomo Stefaneschi, biógrafo de Celestino V), relata que o idoso homem, acostumado à vida de penitência e jejum mesmo antes de ser Papa, impunha-se a si mesmo um rigor assombroso (como era, aliás, típico de alguns monges ligados aos espirituais, que chegavam ao paroxismo em suas penitências). Assim, nas palavras de Tosti, que culpa teria Bonifácio se o ex-Papa jejuava às vezes durante dois dias, mortificava-se fisicamente e dormia no chão, mesmo com sua avançada idade, por amor à penitência? E mais: a estreiteza da cela onde Morrone ficou — onde, segundo o relato das fontes primárias, cabiam apenas duas pessoas — foi exigência dele mesmo!
Como se vê, são fábulas maléficas espalhadas por inimigos de Bonifácio VIII as histórias do “assassinato” de Pedro Morrone, ex-Celestino V. Mas com relação a este tópico vale ainda fazer a defesa do grande Bonifácio VIII no tocante aos motivos que o levaram a manter sob sua custódia o Papa que renunciara à suprema dignidade apostólica por conta própria. Eles têm a ver com a função que cabe aos Papas como governantes da Igreja até o final dos tempos, Igreja que é mestra, médica e juíza, como apontou-se acima. Têm a ver com a função daqueles a quem cabe julgar a moral e os costumes e zelar para que, no plano político, não surjam obstáculos à salvação das almas.
A argumentação é simples: o perigo de cisma era mais do que evidente, pois, como diz Villoslada, a fúria desesperada dos “espirituais” franciscanos após a renúncia de Celestino V levou-os a uma campanha de difamação e calúnias contra um Papa como nunca houve até então em toda a história eclesiástica, e nem depois. Além de blasfêmias e sacrilégios, trataram a Bonifácio VIII como pseudo-Papa, herético, sodomita, satanista, etc., desorientando muitas cabeças e criando problemas de eclesiologia que só seriam resolvidos séculos depois. Nas palavras de Villoslada, esses homens “contribuiram para o desprestígio do Pontificado e alimentaram as primeiras fontes da [herética] doutrina conciliarista”.
Ora, num cenário como este, levando em conta a fortíssima pressão destes inimigos da Igreja (alguns deles ligados à família dos Colonnas) e a patente debilidade do caráter de Pedro Morrone, Bonifácio VIII, ao mantê-lo confinado, evitou o que provavelmente seria um dos grandes cismas da história da Igreja — fomentado por um ódio insano travestido de virtudes.
Refutadas, pois, as acusações (infelizmente, repetidas ainda hoje em alguns ambientes católicos) de que Bonifácio VIII seria um usurpador que adquiriu a tiara pontifícia graças a ardis políticos e, pior ainda, teria mandado assassinar o Papa anterior que renunciara, veremos no quarto texto desta série se procedem as acusações de que Bonifácio foi responsável pela ida do Papado a Avignon.
Não chegamos nem à metade da história.
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1- Que Celestino V renunciou com plena liberdade, ou seja, por vontade própria, é fato indubitável, nas palavras de Ricardo Villoslada. O documento de abdicação, lido pelo Papa diante de todos os cardeais, não deixa a menor margem a dúvidas: “Ego Celestinus papa V, motus ex legitmis causis (...) sponte ac libere cedo papatui et expresse renuntio loco et dignitati, oneri et honori”. É certo que o escrupuloso Morrone aconselhou-se com os cardeais acerca de sua renúncia, entre eles o Cardeal Gaetani (futuro Bonifácio VIII), mas não há nenhuma fonte primária que insinue que Gaetani o tenha oprimido, coagido ou coisa que o valha. A bibliorafia arrolada por Villoslada em sua Historia de la Iglesia Católica é considerável.
2- Um dos mais fanáticos e virulentos homens desta campanha foi Jacopone di Todi, que esperava ardentemente pelo “Papa angélico” (que acreditava ser Celestino V) e, com o seu talento poético, escreveu contra Bonifácio alguns dos mais odiosos panfletos (em prosa e em verso). Do Papa escreveu, por exemplo “Come la salamandra / vive dentro lo foco / cosi par che lo scandalo / te sie sollaz’ e joco /dell’anime redente / per che ti curi poco”.
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
A Carta Magna da política católica
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
O mau-caráter e a filosofia
Sidney Silveira
Pode um mau-caráter ser exímio matemático. Pode também notabilizar-se como astrofísico, gramático, geneticista, cirurgião, enxadrista, músico ou lixeiro. Mas ao mau-caráter a filosofia está formalmente vedada, se por filosofia se entende a inquirição das verdades íntimas e últimas da ordem do ser, as quais dão sentido e perspectiva à vida humana — partícipe do ser.
Em resumo, a filosofia pressupõe um tão grande amor à verdade que leva o homem a tomá-la como o fim a ser buscado, o fundamento de todos os valores. Ora, isto exclui ipso facto o mentiroso, o caluniador, o vanglorioso professor cuja atividade consiste em induzir os seus discípulos a venerá-lo como a um guru, o retórico embusteiro, o sofista ávido por vencer um debate a qualquer custo, fazendo uso dos mais deploráveis expedientes e truques. Como adiante veremos, o que se afirma aqui não é pura e simples opinião, mas uma verdade cientificamente demonstrável em clave metafísica.
No mau-caráter — ou seja, no sujeito que habitualmente fere a verdade e o bem para obter vantagens —, a razão especulativa e a razão prática estão dramaticamente afetadas, embora não possam ser suprimidos os primeiros princípios que lhes servem de esteio, pois radicam na forma entis humana como hábitos naturais inatos[1]. E o sintoma primário da doença que afeta as potências superiores da alma do mau-caráter é o seguinte: com os seus reiterados atos movidos pela vanglória, pelo orgulho, pela cupidez, etc., ele priva-se da virtude supracapital no âmbito da razão prática, que é a prudência, definida por Santo Tomás de Aquino como reta razão no agir (recta ratio agibilium).
Ora, perdida a prudência, todas as demais virtudes, inclusive as intelectuais, contaminam-se, visto que estão radicadas na prudência como numa espécie de fonte comum. Sim, pois não pode o imprudente ser habitualmente sábio, nem justo, nem temperante, nem veraz, etc., embora possa ser detentor de alguma ciência particular — da qual faça uso em ocasiões específicas. Não pode, portanto, ser filósofo, porque a inquirição da verdade típica do labor filosófico exclui absolutamente os três principais frutos da imprudência: a inconsideração, a precipitação e a inconstância. Ao contrário, ela exige deliberação profunda, paciência e constância, pois, devido ao dificultoso modo humano de apossar-se da verdade, o filósofo precisa ser alguém cauteloso e perseverante.
Em poucas palavras, o mau-caráter age contra a natureza da razão, e com isso torna-se culpavelmente incapaz de perceber a hierarquia dos valores que devem reger as ações humanas; padece ele, portanto, de um gravíssimo déficit cognitivo que afetará a vontade na escolha dos bens com que depara cotidianamente. Neste contexto, vale aludir a dois luminosos artigos da Suma Teológica nos quais o Aquinate se pergunta se é possível haver virtude moral sem virtude intelectual, e se é possível haver virtude intelectual sem virtude moral[2]. Sua demonstração filosófica para este problema nada desprezível parte de algumas premissas:
Ø a de que, para o homem agir bem, se requer que a razão esteja bem disposta pelas virtudes intelectuais, e que as faculdades apetitivas estejam bem dispostas pelas virtudes morais. Estas são precondições ontológicas para a inteligência e a vontade alcançarem os seus objetos formais próprios: a verdade e o bem, respectivamente;
Ø a de que as faculdades apetitivas não obedecem à razão com total disponibilidade, mas sim com certa resistência, ao ponto em que muitas vezes as paixões ou os hábitos radicados nos apetites obliteram o uso da razão. Daí ser necessário educar o apetite, orientá-lo aos seus fins devidos, o que pressupõe o conhecimento desses fins;
Ø a de que, se a virtude aperfeiçoa a razão especulativa ou prática, é virtude intelectual (ex.: a ciência enquanto hábito mental da verdade); se aperfeiçoa as potências apetitivas, é virtude moral (ex.: a temperança, que é certa continência no fruir alguns prazeres sensitivos).
Consideradas, pois, todas estas coisas, o Aquinate chegará à conclusão de que as virtudes morais podem de fato não estar acompanhadas de algumas virtudes intelectuais — como a da ciência, por exemplo. Mas não pode existir virtude moral sem a efetiva atualização dos primeiros princípios da razão especulativa, que, como se observou acima, é prejudicada em cheio pela perda da prudência (e, aqui, entenda-se por atualização dos princípios a sua simples aplicação aos casos particulares). Assim, é possível haver pessoas boníssimas ignorantes em várias ciências, mas não é possível haver pessoas boas privadas do entendimento atual dos primeiros princípios, que são reitores da ação humana.
Com relação às virtudes intelectuais, elas até podem existir sem algumas virtudes morais, mas não sem a virtude supracapital da prudência — recta ratio agibilium. Ora, a prudência não apenas aconselha bem, mas também julga bem. Ocorre que, de acordo com Santo Tomás, a prudência só pode existir, ou seja, julgar convenientemente, se as paixões que perturbam o juízo forem removidas (cf. Suma Teológica, II-IIª, q. 58, a.5, ad. 3).
Pode-se depreender de tudo o que acima se disse o seguinte: o mau-caráter jamais poderá transformar-se num verdadeiro filósofo, ou seja, no detentor da sabedoria dos princípios e dos fins que regem a ordem do ser. E tal conclusão está totalmente de acordo com a premissa de que a clara visão da verdade pressupõe que as potências superiores da alma humana não estejam acidentalmente impedidas de lograr os fins aos quais tendem.
Sendo assim, o mau-caráter, quando imiscuído nas coisas filosóficas, será na melhor das hipóteses uma espécie de prestidigitador, alguém que pode até enganar a alguns incautos persuadindo-os, a preços nada módicos, de que é um grande filósofo, e de que seus discípulos necessitam tanto da luz de sua excelsa “sabedoria” como de água para sobreviver. De Górgias — que, segundo consta, cobrava caríssimo por seus ensinamentos — até os dias atuais, esse tipinho jactancioso é bastante encontradiço na história da filosofia.
1- Tanto os princípios da razão especulativa como os princípios da razão prática são, de acordo com Santo Tomás, hábitos naturais inatos. São hábitos enquanto intermediários entre a potência e o ato; são naturais enquanto propriedades radicadas na essência humana; e inatos por não serem adquiridos, ou seja, por já nascerem com o homem.
2-II-IIª, q. 58, art. 4 e 5.
terça-feira, 17 de janeiro de 2012
O plano da série sobre os regimes políticos
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
"A arte da direção das almas" - obra disponível no blog "A Grande Guerra"
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