sexta-feira, 19 de março de 2010

A vontade humana e a “præmotio” divina: o verdadeiro sentido da liberdade



Sidney Silveira
Já ouvi de estudiosos da obra de Santo Tomás que a vontade humana é livre em absoluto, ou seja: ninguém, nem mesmo Deus, poderia penetrar o íntimo da vontade e mudá-la, moldá-la, fazê-la passar internamente da não-volição à volição de um bem. Com o objetivo de preservar a liberdade — que o liberalismo, deturpando, converteu no grande bezerro de ouro a ser idolatrado por todos —, em geral esses professores apóiam a sua opinião em passagens da obra do Aquinate nas quais se afirma o seguinte: nenhum anjo, nenhum demônio, nenhuma criatura pode mudar internamente a vontade do homem. E, mais ainda, no famoso trecho em que o grande teólogo frisa, categoricamente, o seguinte: Deus não pode coagir a vontade humana (De Veritate, XXII, 8, resp.). Aqui, não posso senão concluir que o intuito de transformar a liberdade em valor absoluto fez esses estudiosos não enxergarem o óbvio: que, na resposta ao supracitado artigo, assim como em outros lugares de sua obra, Santo Tomás afirma que Deus pode mudar a vontade humana necessariamente (Deus potest mudare voluntatem de necessitate).

Estamos aqui no olho do furacão de uma polêmica que durou séculos entre tomistas e adversários do tomismo: defendeu ou não Santo Tomás a premoção divina (a præmotio) da vontade humana? E mais: ela é ou não contrária ao conceito de liberdade? Vejamos o problema mais de perto, não sem antes deixar de consignar que o contrário da liberdade não é a necessidade, mas a coação. Por exemplo: queremos necessariamente o nosso próprio bem*, sem ser coagidos a isto. Ademais, o que sucede espontaneamente provém do apetite interno (caso do ato propriamente voluntário: a escolha), enquanto o que vai contra o apetite interno, isto sim, é coação (caso de alguém obrigado a fazer algo que não quer).

Partamos da seguinte constatação: quanto mais poderosa é uma causa, mais perfeito é o seu influxo sobre os efeitos. Ora, Deus é a onipotente prima causa omnium, o que inclui a vontade livre do homem, também criada por Ele. Logo, o influxo da ação divina alcança todos os âmbitos do ser, inclusive a vontade criada. Além disso, em si mesma a atividade criadora de Deus não se distingue de sua atividade mantenedora, razão pela qual, como mostramos em outro artigo, a natureza (ou seja: o conjunto de todos os entes naturais do universo) depende ontologicamente de uma causa sobrenatural para manter-se, para ser o que é, pois nenhum ente tem, em si mesmo, a causa da sua conservação na ordem do ser. Pois bem: a atuação divina estende-se não apenas ao ser das criaturas, mas também às suas operações, que na verdade seguem o ser (opetatio sequitur esse). Sendo, pois, a vontade uma das operações próprias do homem, conseqüentemente estará também ela sob o poder e o governo da ação divina.

Uma das objeções contrárias à præmotio, e que hoje renasce com força entre teólogos modernistas, diz o seguinte: Deus não tem nenhum poder direto sobre os atos livres do homem, pois age apenas indiretamente mediante forças outorgadas à vontade para que se fixe no bem. Tal idéia não considera o que acima foi dito e acaba por transformar a vontade humana em algo absolutamente inexpugnável — e, por conseguinte, também a liberdade, que tem na volição o seu estatuto ontológico. A præmotio, neste caso, seria uma violência que iria contra a liberdade. Neste ponto, falta fundamentalmente a percepção de que, movendo a vontade humana ao bem, Deus não apenas não a coage, mas, ao contrário, a faz alcançar a perfeição, pois, conforme se lê na Suma Teológica (I, 105, a. 4), querer não é outra coisa senão a inclinação natural da vontade ao seu objeto, que é o bem em sentido absoluto (simpliciter).

O ato divino de mover a vontade humana, quando ocorre, é infalível, pois Deus não pode não ter êxito em tudo o que faz. Ademais, fala insistentemente Santo Tomás, em diferentes obras, de uma dupla atuação sobre a vontade: a primeira provém de fora (ab exteriori), dos objetos. Mas esta não é propriamente a præmotio, pois aqui se trata de um influxo ao modo de causa final, ou seja: apresenta-se um bem externo qualquer que leva a vontade a mover-se ao seu ato específico. A outra atuação é ab interiori, ou seja, vem de dentro, da própria potência da faculdade volitiva. Deste segundo tipo o Aquinate fala nas passagens em que aborda a atuação divina (como, por ex., em De Potentia Dei, III, 7), quando mostra que Deus, enquanto causa eficiente do ser e das atividades das criaturas, pode ser causa eficiente da vontade humana. Aqui sim, estamos no horizonte da præmotio.

Em resumo, a vontade do homem pode ser internamente movida ou por suas próprias potências (ex parte ipsius potentiæ) ou, então, por Deus, como causa eficiente infalível (cfme. De Malo, III, 3). Neste contexto, vale lembrar, como faz G. Manser em A Essência do Tomismo, que Santo Tomás considera absolutamente errôneo crer que a eficiência da ação divina suprima a atividade própria das criaturas. Igualmente errôneo para o Aquinate é pressupor que alguma atividade criada possa efetivar-se sem nenhum auxílio divino, porque, radicalmente, o operar dos entes tem como sustentáculo a virtude do primeiro agente, que é Deus (secundum agens agit virtute primi agentis. cfme. Suma, I, q. 105, a. 5 - “Deus opera em tudo?”).

Quando se dá, a operação divina sobre a vontade humana é direta e imediata, e não suprime a liberdade — mas a aperfeiçoa e a faz alcançar o optimum. A moção da vontade acontece, repitamos, tanto pelas próprias potências da vontade quanto por Deus (motus voluntatis directe procedit a voluntate et a Deo, quia est voluntatis causa. “De Veritate”, XX, 9). Mas como poderiam duas causas distintas (Deus e a vontade) causar diretamente a volição? O próprio Angélico colocou-se este problema e a resposta que deu foi a seguinte: a dupla moção da vontade é possível dada a prioridade causal da atuação divina com relação a todas as causas naturais. Ou seja, Deus e a vontade humana se ordenam entre si conforme prius et posterius, e, portanto, pode Ele agir simultaneamente com a vontade de um homem no ato de querer, em razão da prioridade ontológica de Sua ação. Este é, exatamente, o sentido da præmotio.

O influxo divino sobre a vontade é direito inalienável de Deus, e certamente não se dá contra naturam, como os críticos da premoção imaginaram, mas sim pro naturam, na medida em que se trata de um auxílio especial para que a natureza (no caso, da vontade humana) alcance o seu objeto. Neste contexto, vale lembrar que, além de todos os argumentos filosóficos com os quais Santo Tomás esgrime em favor da verdade, ele também se vale da Sagrada Escritura para defender a sua tese, como é o caso da Suma Contra os Gentios (III, 88-89), quando ao abordar o tema ele nos remete ao texto revelado: “O coração do rei está nas mãos do Senhor (Prov., XXI, 1); “Deus opera em vós tanto o querer como a sua execução, segundo o Seu beneplácito” (Filip. II, 13).

Para finalizar este breve texto, registremos que, para Santo Tomás, Deus — causa primeira e universal do ser — move todas as criaturas de acordo com a natureza que lhes é própria, sem comprometer a sua atividade específica**. Daí que possa Ele também mover necessariamente a vontade de acordo com a própria natureza desta, mas sem coagi-la. A título de exemplo, digamos que a ação de Deus sobre a nossa vontade acontece de forma similar à de um carpinteiro e seu instrumento em relação à madeira: o instrumento cortante é o que talha a madeira, de fato, mas o faz de acordo com a intenção e a força impressa pelo carpinteiro ao ato. Neste sentido, a causa superior (a ação do carpinteiro) é o influxo maior sem o qual a madeira não seria cortada pelo instrumento. O mesmo ocorre, segundo Santo Tomás, com a virtude da ação divina aplicada à vontade humana.

Tendo esta doutrina em vista, vale ainda lembrar que a liberdade é especificada não pela escolha livre e voluntária (mera causa instrumental), mas pelo objeto formal de sua atuação — que é o bem. Portanto, o verdadeiro sentido da liberdade está, formalmente, na escolha efetiva do bem, e não na potência para escolher entre o bem e o mal, a que Santo Agostinho chamava libero arbitro.

Peçamos, pois, a Deus — Sumo Bem — o excelso dom de querê-Lo.

Em tempo: Tudo isso nos leva à seguinte e angustiosa questão: por que Deus permite o mal? Ou melhor: por que permite Ele que alguns homens não escolham o bem, já que teria poder para, necessariamente, movê-los a tanto? Este é outro assunto, decorrente do problema ora abordado. A ele nos referiremos noutra oportunidade.
* Está implícito nesta premissa que a vontade, ao querer, é movida pela forma de um bem, seja este real ou ilusório. Mesmo um suicida, ao matar-se, deseja pôr fim aos seus tormentos, e neste caso o motor da vontade é a morte apetecida como um bem circunstancial maior do que a vida — do que a dor de viver. O mesmo se pode dizer de um assaltante que rouba um banco, de um estuprador que abusa de alguém, etc. Mesmo agindo mal, esses hipotéticos personagens são movidos por algo que se lhes apresenta como um bem, no ato: o dinheiro para o assaltante, o gozo para o estuprador e a morte para o suicida.
** A exceção são os milagres, de que não trataremos no presente texto. Apenas apontamos que, no caso do milagre, sobrenaturalmente um ente é levado por Deus a atualizar potências que, em princípio, estão muito além das inscritas em sua forma.