sexta-feira, 11 de julho de 2008

Ludwig von Mises e quejandos (I)

Sidney Silveira
Não há como chegar ao conceito de “liberdade” sem partir de uma antropologia filosófica que dê respostas satisfatórias acerca do que seja o homem (qual a sua essência, as suas potências, etc.) e do que sejam os atos propriamente humanos, isto é, aqueles que distinguem a forma entis do homem de qualquer outra, na ordem do ser. Pois bem: quando lemos um autor liberal que tenha tratado o tema da liberdade ou o dos atos humanos (sem nenhuma exceçãozinha, o que é desgraçadamente incrível!), vemos que a sua perspectiva antropológica e psicológica é de um empirismo tosco sem igual, além de carecer da tão indispensável base metafísica.

O incensado Ludwig von Mises, por exemplo, logo no começo da sua Ação Humana, coloca como pré-requisito indispensável para os atos dos homens a expectativa de que as suas ações tenham o poder de afastar ou, ao menos, amenizar o desconforto, pois o agente humano estaria sempre ansioso por substituir uma situação menos confortável por outra mais confortável, e acrescenta: um homem plenamente feliz com a sua situação não teria motivações para agir, mudar as coisas; não teria aspirações a nada. E, depois de dizer que “não existe outra medida da maior ou menor satisfação do desejo dos homens além do julgamento individual do valor” — tese de um subjetivismo axiológico equivocado, conforme veremos ao longo da série de textos que se inicia com este post, mostrando que há um ato de ser e, por conseguinte, um bem e um valor em si nos próprios entes, os quais independem do nosso julgamento individual, embora nós os alcancemos por este último —, pontifica o nosso economista: “Nenhuma pessoa tem condições de determinar o que faria alguém feliz”. Precisará esta infeliz proposição, mais adiante, passar pelo bisturi do legista, que revelará os sofismas ocultos sob tal juízo inerme.

Nós não precisamos acusar o liberal Ludwig von Mises de hedonista — e, conseguintemente, de materialista —, pois ele mesmo o assume e diz, ainda no primeiro capítulo da sua Ação Humana, que as doutrinas “teológicas” e “místicas” (o que quererá dizer com estas duas palavras o nobre economista, é algo tão insondável quanto o círculo triangular) não abalaram a essência do... epicurismo! Ufa! Isto nos instiga a fazer, aqui, uma breve recordação dirigida a algum liberal católico que, malgré lui même, aprecie Mises: a prova material de que epicurismo e cristianismo são contraditórios está no simples fato de que Cristo morreu na cruz, por nós. Suportou o máximo desconforto por amor, num ato livre da vontade.

A caridade é um absurdo lógico e uma impossibilidade ontológica, nessa “antropologia” materialista de Mises, a qual trará conseqüências para a teoria econômica a que pretende servir de base. Se o motor dos nossos atos é, sempre, a busca do conforto e a fuga do desconforto, realmente não se explica não somente o ato da caridade — ato extático de doar-se, sacrificar-se; ato livre de quaisquer condicionamentos, por ser ato da vontade —, mas vários outros atos propriamente humanos também ficam por explicar, isto é, todos aqueles realizados por meio das potências distintivas da forma entis humana: vontade (apetite intelectivo do bem) e inteligência. Um exemplo prosaico já foi dado noutro post: a simples ação de louvar algo, que compreende um ato de nossa potência intelectiva, ao passo que fruir e se afastar do seu contrário, o desgostar (um desconforto, diria Mises) são atos da potência apetitiva que não alcança o fim como ordenadora, mas apenas como executora.

Em suma, se dermos crédito a Mises, uma das precondições gerais da ação humana — ou seja: a fuga (ou expectativa de fuga) do desconforto — não será algo propriamente humano, mas uma ação de nossas potências inferiores que só alcançam o fim como executoras e não como ordenadoras, e que compartilhamos com todo o gênero animal: da mais insignificante ameba, restrita a movimentos locais, a um Santo Antão em êxtase místico-contemplativo, e, portanto, no ato ou movimento mais elevado da sua potência intelectiva, todos possuem algumas potências executoras em sua anima. Mas quanta diferença entre eles!

Um dos vários e cansativos erros de Mises está no fato de que ele coloca num mesmo balaio eudaimonismo e hedonismo. Diz o nosso economista: “A idéia de acordo com a qual o incentivo à ação humana é sempre um desconforto, e que seu objetivo é sempre afastar esse desconforto tanto quanto possível, ou seja, fazer o agente homem feliz, é a essência dos ensinamentos do eudaimonismo e do hedonismo”. Erradíssimo, meu filho! É verdade, sim, que buscamos o bem para nós mesmos, e, portanto, a felicidade, que seria a posse habitual de um bem ou de uma série de bens, mas isto não implica que somente a busquemos fugindo ao desconforto (e, portanto, ao desprazer), porque, como a busca dos fins implica a posse dos meios a ele ordenados, muitas vezes somos obrigados a enfrentar (e não fugir) ao desconforto dos meios para alcançar os fins. Quem educa ou já educou um filho, por exemplo, quantas vezes já não se viu em situações desconfortáveis? A fuga do desconforto e a busca do seu contrário podem, sim, definir a essência da teoria hedonista, mas nunca poderão ser definidas como a essência da teoria da felicidade de Aristóteles, que pressupõe toda uma ética e, conseqüentemente, uma teoria política que é a sua culminação. Será que Mises estava sem óculos quando leu — se é que leu — a Ética a Nicômaco?

Das premissas da psicologia de Mises — para cuja exposição ele gasta prolixamente páginas e mais páginas dessa obra-calhamaço, que, para alguns, é o seu opus magnum —, falaremos noutro post.