sábado, 13 de novembro de 2010

O fundamento metafísico das virtudes

Sidney Silveira

Como se vem reiterando no Contra Impugnantes a importância de educar para a virtude, vale mencionar, em linhas gerais, o que são as virtudes, de acordo com Santo Tomás de Aquino. O que vai abaixo são apenas anotações produzidas para ser comentadas em aula, razão pela qual peço aos nossos leitores mais exigentes que dêem um pequeno desconto quanto à forma do texto; afinal, por estes dias estou sem tempo algum para escrever, e um dos motivos disto é a impressão dos primeiros DVDs da coleção A Síntese Tomista.

Análise metafísica das virtudes

A profundidade da obra de Santo Tomás de Aquino pode ser mensurada, entre outras coisas, pelo fato de o Aquinate buscar em tudo a raiz metafísica. E este é também o caso de sua análise das virtudes — tanto na Prima Secundæ como na Secunda Secundæ da obra mais conhecida por ele escrita: a Suma Teológica. Informa-nos ali o Aquinate que a virtude é um hábito, uma qualidade da alma que a predispõe à realização dos fins aos quais naturalmente tende. E o mesmo se pode dizer dos vícios, que são um desvio dos fins da alma. Noutras palavras: se a disposição habitual for conveniente à natureza, será virtuosa; se for contrária à sua natureza, será viciosa.

Em resumo, do ponto de vista metafísico, os vícios são hábitos operativos da alma totalmente contrários ao movimento natural de suas potências superiores: a inteligência e a vontade. E as virtudes, por sua vez, são os hábitos que levam à natureza ao optimum de suas operações.

Santo Tomás mostra também que os hábitos são necessários. E isto pela seguinte razão: nos entes compostos (de matéria e forma, de ato e potência, substância e acidentes, ou, então, de essência e ser), é necessário haver ordem entre as potências, para que a natureza efetivamente logre o fim ao qual tende. Daí a necessidade de haver dois tipos de hábitos: os entitativos (que são os movimentos naturais das diversas potências; por ex.: o hábito entitativo do esôfago é levar o alimento ao estômago); e os operativos, provenientes das potências que mais propriamente distinguem a essência do ente (no caso do homem, as já citadas inteligência e vontade).

Com relação ao sujeito dos hábitos, identifica-os o gênio medieval no corpo (a boa ou má-disposição para a saúde); na alma sensitiva (os hábitos de suas várias potências, como as motrizes, as vegetativas, etc.); e na alma intelectiva (na inteligência, é o hábito da ciência; na vontade, o hábito das boas ou más escolhas).

Outro ponto: nas potências superiores há os chamados hábitos naturais inatos, que são: a) o conhecimento dos primeiros princípios da razão especulativa (entre os quais o fundamental é o da não-contradição); b) e o conhecimento dos primeiros princípios da razão prática, chamado sindérese. Esses dois hábitos primevos são infalíveis com relação aos seus objetos formais próprios. Assim, sei muito bem desde a mais tenra idade que eu sou eu (princípio da razão especulativa) e que certas coisas são boas ou más (princípio da razão prática). A propósito da infalibilidade da sindérese, há um artigo estupendo no De Veritate em que o Aquinte demonstra cabalmente que, em todas as naturezas, “o naturalmente inerente sempre permanece inerente” (quod naturaliter inest semper inest), razão pela qual é necessário que estes princípios inscritos em nossa forma entitativa permaneçam sempre, pois, se se perdessem, corromper-se-ia a natureza in totium.

Prossigamos reiterando o seguinte, à luz de tudo o que se disse: a virtude é um hábito operativo da alma (e não do corpo); e esse hábito é bom, pois denota a disposição para o exercício ótimo da potência intelectiva, evitando que esta se desvie dos seus objetos próprios. Daí Santo Tomás afirmar que “a virtude é hábito bom e princípio operativo do bem”. (Suma, I-II, q. 55, art. 3).

E mais: da mesma forma como existem os sujeitos dos hábitos, também os há no que tange às virtudes. Neste último caso, o sujeito será propriamente a alma intelectiva, pois os hábitos operativos da alma sensitiva não podem ser sujeito de virtudes de forma alguma, na exata medida em que precisam das potências superiores para consumar as boas obras em seu âmbito. Por exemplo: fazer exercícios faz bem para o corpo, mas a virtude (em sentido analógico) deste hábito está na vontade, apetite intelectivo do bem, que põe as potências motrizes do corpo em marcha.

As virtudes intelectuais aperfeiçoam o intelecto na consideração da verdade e, também, no que diz respeito à razão prática. Isto no seguinte sentido:

Na razão especulativa

1- Inteligência habitual inata dos primeiros princípios (como o da não-contradição, o de identidade, etc).

2- Ciência (hábito metal da verdade, dependente da inteligência dos primeiros princípios, acima citada): o papel do cientista é lograr um conhecimento do objeto formal-terminativo de sua ciência.

3- Sabedoria (unificação de várias ciências a partir das causas últimas e altíssimas da ordem do ser. É a mais perfeita das virtudes intelectuais): o papel do sábio é propriamente ordenar tudo ao fim. São, em linha geral, três os tipos de sabedoria: com relação aos princípios universais na ordem natural, Metafísica; com relação ao princípio e fim de todas as coisas, Teologia; e o dom de Deus chamado sabedoria sobrenatural infusa (caso em que Deus comunica uma verdade sobrenatural diretamente à alma).

Na razão prática

1 Arte. Definição: “Reta razão nas obras que devem ser feitas” (ratio recta aliquorum operum faciendorum). Hábito operativo: virtude de realizar bem as obras, o que exige como precondição um conhecimento habitual da verdade na matéria, por parte do artista.

2- Prudência. Definição: “Reta razão no agir” (recta ratio agibilium). Em resumo, a arte propicia a aptidão para obrar bem; a prudência, por sua vez, é o hábito antecedente à arte que propicia o bom uso dessa aptidão. Em suma: a arte é a reta razão na produção das coisas; e a prudência, a reta razão no agir.

Virtudes MORAIS

Premissa importante: nem toda virtude é moral.

Distinção entre virtudes morais e intelectuais.

Virtude intelectual: disposição da razão para a contemplação da verdade e, por conseguinte, para o bom uso da razão prática.

Virtude moral: disposição do apetite intelectivo (chamado “vontade”) para a posse efetiva de bens reais.

A virtude intelectual pode dar-se sem a virtude moral. Segundo Santo Tomás, com exceção da prudência, as virtudes intelectuais podem existir sem as virtudes morais. Mas a prudência (virtude do intelecto prático, como vimos) sempre vem acompanhada da virtude moral.

A virtude moral não pode dar-se sem mínimas virtudes intelectuais. Em resumo, para que o homem eleja retamente os meios conducentes ao fim, é necessário um adequado conhecimento dos fins naturais. Daí dizer o Aquinate, no Comentário ao Credo, que, num certo sentido, “uma velhinha com fé sabe mais que Aristóteles”, pois ela conhece pela fé o fim último do homem. Aqui, a lição é a seguinte: toda pessoa moralmente boa, mesmo a mais inculta e menos agraciada com luzes intelectuais que possamos imaginar, para ser de fato boa sempre precisará ter como virtude antecedente um hábito intelectivo bom: a anuência da inteligência a verdades fundamentais.

Relação entre virtudes morais e paixões

Premissa: a virtude moral harmoniza-se com as paixões. Ou seja: é a ordenação das paixões em vista do bem. O vício moral é a desconformidade entre a paixão e os hábitos das potências intelectivas. Ou seja: é a desordem das paixões, que oblitera a razão e acarreta a ação má.

Definição de paixão: movimento do apetite sensitivo pela imaginação de um bem ou de um mal.

Fundamento ontológico da paixão, segundo Tomás: “O Amor é a raiz primária de todas as paixões”. O amor, aqui, é essa apetência natural do bem, que abarca o corpo e a alma.

Divisão das principais virtudes morais:

Uma com relação às operações:

Na
Vontade

Justiça

Dez com relação às paixões:

1- Temores e/ou audácias.

No apetite irascível

Fortaleza

2- Ira.

No apetite irascível

Mansidão

3- Prazeres do tato.

No apetite concupiscível

Temperança

4-Honrarias medíocres, vanglórias

No apetite concupiscível

Filotimia

(amor da honra)

5- Honrarias dignas.

No apetite irascível

Magnanimidade

6- Riquezas materiais.

No apetite concupiscível

Liberalidade

7- Riquezas espirituais.

No apetite irascível

Magnificência

8-Trato social.

No apetite concupiscível

Afabilidade

9- Amor à verdad.e

No apetite concupiscível

Veracidade

10- Jogos.

No apetite concupiscível

Eutrapelia (caráter lúdico, diversão, bom humor).

As virtudes CARDEAIS

São para Santo Tomás as chamadas virtudes principais, no plano meramente humano. Ou seja: são as mais importantes das virtudes morais. Isto porque as demais estão para elas assim como o efeito está para as suas causas próximas.

São quatro:

1- Prudência (consideração racional da ação).

2- Justiça (Ditame da razão com relação a alguma coisa ou ordem de coisas).

3- Temperança (Continência de alguma paixão desordenada).

4- Fortaleza (firmeza para não contrariar os ditames da reta razão, perante uma situação difícil).

As virtudes TEOLOGAIS

Virtudes orientadas ao fim último do homem, infundidas por Deus. Elas aperfeiçoam o homem para que venha a possuir o bem que excede infinitamente a sua natureza criada: Deus! As virtudes teologais ordenam o homem à perfeita bem-aventurança; as virtudes naturais à bem-aventurança limitada.

São três:

1- (recebimento, pelo homem, das verdades e princípios sobrenaturais, ou seja: a Revelação, a que o homem racionalmente anui. É a inteligência sub lumine fidei).

2- Esperança (vontade orientada ao fim sobrenatural).

3- Caridade (união espiritual da vontade com esse fim sobrenatural beatífico).

De acordo com o Aquinate, neste mundo, a fé precede a esperança e a esperança precede a caridade. Isto porque, sem o conhecimento das coisas sobrenaturais em que deve crer (fé), o homem não tem como esperá-las (esperança), pois só se pode esperar algo que se conhece. E sem essa esperança fundada em Deus o homem, nesta vida, não pode chegar à caridade (pois esta é o amor de Deus e do próximo em Deus, na exata medida em que se esperam os bens prometidos pelo mesmo Deus).

Há que assinalar ainda o seguinte: existem virtudes naturais adquiridas e virtudes naturais infusas. Mas deixemo-las para outro texto.