segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Madeleine-Claudine (um conto)

Sidney Silveira
Eis, abaixo, o segundo conto da lavra deste escriba publicado no Contra Impugnantes (o primeiro fora Claro-Escuro).



Madeleine-Claudine



No parecer do vulgo, deve haver um brutal equívoco na placidez com que Madeleine-Claudine se mantém de olhos fechados, alheia ao céu ameaçadoramente nublado e à fúria da multidão. Naquele instante, ela sente como se a felicidade fosse o esgotamento das possibilidades humanas que, no final das contas, faz uma pessoa apartar-se de tudo, beco sem saída onde a alma encontra a liberdade.


À entrada da majestosa Conciergerie, as vozes pró e contra avolumam-se e o empurra-empurra acaba por levar os guardas a assumir uma postura de agressiva prontidão. Madeleine-Claudine no entanto se mantém impassível, quebrando com o seu silêncio a linearidade dos acontecimentos que culminaram na eloqüência das baionetas em riste, bem à sua frente, e no rumor de desespero das inúmeras pessoas ali presentes, a quem não parece restar outra opção senão gritar, gritar, gritar. Ainda de olhos fechados, Madeleine-Claudine subitamente entende que o medo é uma espécie de fadiga — estertor ocasionado pela resistência pertinaz e desconfiada perante a possibilidade do mal. Ela porém acordara naquela manhã com a boa disposição que o otimismo traz, daí a leveza do semblante no qual apenas os mais atentos percebem um discreto sorriso, devido à sua deliberada decisão de esconder do mundo, tanto quanto possível, este íntimo triunfo sobre a opressão.


A tarde enfim chega, e na assistência um silêncio angustioso substitui o deboche e o escárnio, pois, quando a humildade se torna digna de crédito, a ponto de não ser possível acusá-la de hipocrisia, paira sobre as consciências algo de solene, e nestas ocasiões até os mais depravados caracteres humanos se desconcertam, ao verem quebrar-se a sua lógica torpe. O fato é que, dentro de poucos minutos, a fria e losangular lâmina da guilhotina levará deste mundo Madeleine-Claudine e quinze amigas suas, em nome da liberdade, da igualdade e da fraternidade, e elas, apesar de prestes a perder a vida, comunicam a seus acusadores, aos carrascos e aos revolucionários sans-cullottes que testemunham o evento uma coisa que não se perde ao se dar, mas que só pode receber quem já a possui: os recalcitrantes dão a ela o nome esfíngico de amor. No caso dessas mulheres, na forma de incondicional perdão.



Madeleine-Claudine e suas companheiras entoam cânticos durante todo o acidentado percurso da Conciergerie à Praça da Concórdia, onde em Paris as vozes discordantes vêm sendo higienicamente silenciadas, pelo bem da nova ordem política. Ao vê-las passar, algumas moças às lágrimas lhes atiram flores, enquanto outras, as “lambedeiras de guilhotina”, praguejam terrivelmente, insultam, xingam a plenos pulmões [Fanáticas desgraçadas! Cadelas! Daqui a pouco veremos as suas cabeças num cesto. Vocês merecem, traidoras. Porcas imundas! Estão pagando pelo que fizeram, malditas]. Ela ouve estes e outros impropérios de olhos baixos e sem dizer palavra, sabedora de que não pode haver convicção na eloqüência maledicente porque só a verdade ata o espírito. Geralmente, ofender é uma fabulação de imagens ou conceitos pela qual alguém falsifica a própria consciência, e aquele palavreado acusatório era vazio, típico de quem não sabe o que diz, embora diga-o de caso pensado. Madeleine-Claudine aprendera em suas meditações e na experiência cotidiana que na malícia há sempre uma radical dose de ignorância, e escolheu manter-se calada.


A caminho do cadafalso, caracteriza o ânimo daquelas mulheres um torpor tranqüilo, quase irresponsável. Elas vão sendo conduzidas como se estivessem em transe, ou como se ouvissem uma música apaziguadora para os sentidos. Mas o seu espírito está aguçado e não perde de vista o significado maior daquela fatídica tarde de 17 de julho de 1794, mesmo no momento em que todas são aturdidas pelo fato de Anne-Marie Madeleine, a mais idosa delas, ser atirada ao chão por não caminhar no ritmo em que desejava o algoz, ferindo-se gravemente no rosto. Em verdade, assim transcorrem as relações das pessoas com os acontecimentos, umas jazem na superfície deles, e são a imensa maioria, outras estão atentas àquilo que essencialmente os constitui; eis, na prática, a diferença entre amor e ódio, entre ver a realidade ou passá-la pelo prisma da fantasia.


O canto de Madeleine-Claudine e de suas amigas prossegue [Te Deum laudamus. Te Dominum confitemur. Te aeternum Patrem, omnis terra veneratur...]. A tensão cresce, e entre os executores da pena capital há uma inércia pasmosa diante do ritual com que elas vão colocando-se diante de Madeleine-Claudine para renovar a sua fidelidade ao amor que dá a vida, repetindo em alta voz os votos que traduzem os princípios aos quais aderiram há alguns anos, com os olhos da alma abertos. Antes de tudo se consumar, ela se vira para o carrasco para dizer breves palavras [O senhor pode fazer a gentileza de me deixar ir por último? Quero dar força a minhas amigas] [Como quiser, senhora]. Como soldados perante um comandante, todas então se agrupam em atitude marcial a uma simétrica equidistância de Madeleine-Claudine, e voltam a cantar enquanto vão sendo convocadas, uma a uma, para subir os fatídicos degraus que levam à morte [Veni Creator Spiritus, mentes tuorum visita, imple superna gratia quae tu creasti pectora...].


Marie-Françoise Villette, uma das testemunhas perdidas na multidão, subitamente sente os olhos embaçar, ao ponto de as imagens até então nítidas transformarem-se numa mescla amorfa de cores sem formas que as acompanhe. Neste exato instante, quando é chamada ao cadafalso a primeira das condenadas, conhecida como Marie-Gabrielle e cognominada Irmã Teresa de Santo Ignácio, esta espectadora sequer consegue distinguir a alvura das roupas e da alma daquelas mulheres à beira da guilhotina do tom acinzentado que a mistura das cores e de imagens dá a tudo o que vê. Não se sabe se o seu delírio esconde uma covardia, mas o fato é que o sujeito ao seu lado, monseiur Étienne Lavelle, ao rolar a primeira cabeça balbucia algo em sua direção [Não estou enxergando nada, Marie-Françoise. Está tudo cinza].


Em pouquíssimo tempo aquela espécie de cegueira se espalha entre as trezentas pessoas da assistência, que passam repentinamente a também excretar um suor de odor indefinido, dando ao grupo uma patética e inaudita coesão. As mulheres vão sendo chamadas à sua hora final, e a turba cega apenas consegue ouvir o deslizar da guilhotina decepar-lhes as cabeças: Marie-Anne, ou Madre São Luís; Catherine Soiron, ou Irmã Joana da Divina Infância; Anne Petra, ou Irmã Maria Henriqueta da Providência...


Somente uma jovem vê efetivamente o que se passa, além dos carrascos e dos demais cumpridores zelosos da nova lei, que aceleram os procedimentos da execução. O seu nome é Marie-Geneviène Meunier, a única na platéia a não ser afetada pelo fenômeno, pois vai percebendo com riqueza de detalhes as reações de todos e acaba de ouvir um homem de olhar sardônico chamar ao cadafalso Madeleine-Claudine, a priora Madre Teresa de Santo Agostinho. Marie-Geneviène passa então pelas baionetas do cordão de isolamento e se aproxima dela com um ramo de flores nas mãos. Agora o Veni Creator é em dueto. A jovem ajoelha-se diante de sua mãe espiritual, faz os votos perpétuos e ouve o chamado do carrasco [“Irmã Constância de São Dionísio”]. Sem quaisquer pruridos ou emoções perceptíveis, ela logo sobe os degraus da morte, sendo seguida por Madeleine-Claudine, última a ser guilhotinada naquela sombria tarde parisiense.


Alguns anos depois, monseiur Étienne Lavelle, um dos denunciadores das atividades “contra-revolucionárias” daquelas dezesseis mulheres, e único a ainda padecer da cegueira cinza adquirida por muitos naquele 17 de julho de 1794, chega aos seus últimos momentos. O quarto que serve de palco para o seu leito de morte tem a presença de alguns familiares e amigos, todos esperando alguma derradeira palavra além da única que, desde então, ele repete em estado quase catatônico [Terror. Terror. Terror]. Em seus olhos se esboçara, ao longo de todo esse tempo, uma feição de remorso, mas nada além disso.



No último e supremo esforço para dizer algo, monseiur Lavelle entreabre os lábios e diz algumas palavras ininteligíveis, mas expira antes de revelar a secreta ligação existente entre o ódio e a omissão.