segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Sobre as coisas políticas (V): quando a escolha do suposto mal menor pode perverter a alma

Sidney Silveira

Em teologia moral, a doutrina da restrição mental é de forte sabor agostiniano, pois nos livros Sobre a Mentira (“De Mendacio”) e Contra a Mentira (“Contra Mendacio”) Santo Agostinho deixara-nos claro que a inteligência, ao expandir-se, busca naturalmente a verdade. E a mentira, por sua vez, seria um dito contra mentis, ou seja, um movimento contrário à inclinação natural da mente. Em resumo: para o Santo de Hipona, quando alguém conta uma mentira restringe — no ato — essa expansão natural da inteligência rumo à verdade. Muitos séculos depois de Agostinho, alguns dos mais notáveis teólogos da Igreja adotarão a expressão restrição mental — classificando-a como estrita (ilícita) ou lata (lícita, nos casos em que uma pessoa restringe a mente para omitir algo da verdade que, em dada ocasião, não está obrigada a revelar).

Após definir o mentiroso quanto ao caráter, Santo Agostinho enumera as mentiras com relação aos graus, chegando à conclusão de que a pior de todas é sem dúvida a mentira religiosa, por ser frontalmente lesiva ao fim último do homem. Ora, se, como pode-se deduzir, a classificação das mentiras tem como objeto especificante o bem que cada uma delas contraria, a mentira política será, com certeza, uma das mais nefandas de todas, na medida em que contraria o bem comum da Cidade, instrumento para a consecução da felicidade perfeita, no Céu. Advirta-se no entanto que a conquista do Céu não depende do bem-estar político, pois Deus pode, de potentia absoluta, salvar a quem quiser. Ocorre que, como sempre ensinaram os grandes Doutores da Igreja, Deus ordinariamente move o mundo por causas segundas, de acordo com os desígnios de Sua inescrutável Providência. E quis Ele mostrar aos homens que todo poder terreno provém do alto (Jo. XIX, 11)*.

Pois muito bem: nas democracias liberais, legítimas herdeiras d’O Príncipe de Maquiavel, a mentira política é condição sine qua non da luta intestina pelo poder. Não há partido ou candidato que não a pratique sem o menor constrangimento, sobretudo às vésperas de eleições. E não poderia ser diferente, pois a democracia normalmente entroniza um tipo a que Platão chamava “Demou Eros”, o adulador serpentino cujo objetivo é seduzir a multidão para manter-se no poder a qualquer custo. Profética visão do grande filósofo grego! Se ele acordasse hoje veria, com assombro, quão acertada estava a sua tese de que a democracia engendra a pior das tiranias. Isto porque os amantes da sabedoria são inúteis para a multidão que a democracia alça ao poder. A propósito, pôr representantes da multidão no poder é algo análogo à atitude do capitão do navio que, detendo perfeitamente a ciência da navegação, rogasse a ineptos marinheiros que assumissem o leme (República, VI, 489c)**.

Qualquer pessoa com mínima formação intelectual e moral não consegue ver o horário político eleitoral, ou então um debate entre candidatos a qualquer cargo executivo, sem sentir certo nojo. Não há nessas horas como não ser tomado por uma desesperança profunda com relação ao nosso futuro político imediato. Neste contexto, na tentativa de usar do direito ao voto para escolher o mal menor político, não devemos fazê-lo em detrimento das potências superiores da alma, a inteligência e a vontade, para — sob o pretexto de realizar uma boa ação — não pervertermos o dom maior que recebemos de Deus: entender a verdade e querer o bem.

Assim, se alguém pensa em votar em José Serra contra o presumível mal maior representado pelo PT de Dilma Roussef, pode fazê-lo perfeitamente. Mas fazê-lo com argumentos que, pelo menos assintoticamente, se aproximem de alguma verdade; caso contrário cai-se na restrição mental estrita, acima citada: a omissão (ou torção) da parte mais importante do discurso de forma ilícita, mesmo que sem a perfeita consciência do ato.

Um exemplo? Bem, como a questão do aborto virou um chavão deste segundo turno da campanha eleitoral para presidente da República, vale dizer algumas coisas. A primeira delas é que não se sustenta de maneira alguma dizer que José Serra, não sendo jurista, ao assinar a Norma Técnica do Aborto se deixou enganar pela idéia de que o aborto é “legal” quando a gravidez resulta de estupro. E isto por uma simples razão: a defesa da vida é um dos mais importantes tópicos da lei natural, e não é necessário ser jurista para captar os princípios da lei natural, pois estes são alcançáveis pela sindérese, que é, como demonstrou Tomás de Aquino de forma apodítica, a captação dos primeiros princípios da ordem moral inscrita em nossa forma entis (ver De Veritate, q. 16).

Também não é defensável argüir que Serra não foi o autor da Norma Técnica do Aborto, mas apenas assinou-a. E assinou-a sem ter pleno conhecimento de suas reais implicações. Quer dizer então que, como ministro, ele era um simples fantoche a fazer a vontade dos técnicos? Ademais, se nem mesmo a Igreja julga de foro interno (pois só Deus vê os corações dos homens), só podemos julgar uma ação por sua extrínseca visibilidade e pelos efeitos diretos que acarreta, sejam próximos ou distantes. E, no caso de que se trata, os efeitos são os milhares de abortos praticados com a anuência do Estado brasileiro, nos últimos 12 anos — graças ao jamegão de Serra num documento ministerial.

Não vou aduzir aqui a criação, no governo Serra, em São Paulo, da primeira escola gay para adolescentes na América Latina, pois este é outro assunto e mereceria um longo preâmbulo com a explicação das premissas... De toda forma, se alguém vai mesmo votar nele para evitar o mal maior, que o faça apesar de todas estas coisas, e não com argumentos que parecem justificá-las sob algum aspecto. Seria como justificar o pecado perante Deus.

* Sendo assim, a Cidade deve, por dever de Justiça, prestar o culto devido a Deus e lembrar-se de que as leis que a governam têm n’Ele o seu fundamento primevo.

** A certa altura do Livro VIII da República, Platão nos dá mais uma visão de caráter profético acerca do ambiente democrático: “Tais discursos [democráticos] são os que prevalecem no combate [de idéias]: ao pudor eles chamam 'idiotice', lançando-o fora e convertendo-o em desonroso fugitivo [da Pólis]; ao autocontrole [dos apetites sensitivos, ao qual os cristãos chamarão castidade] chamam ‘falta de virilidade’, injuriando-o e desterrando-o. (...). Reintroduzem a desmesura, a anarquia, a prodigalidade e o despudor (...); elogiam-nos e chamam, eufemisticamente, de ‘cultura’ a toda sorte de desmesuras; de ‘liberalidade’ à anarquia; de ‘grandeza de espírito’ à prodigalidade; e de ‘virilidade’ à impudicícia”. (República, VIII, 560, d-e). Em síntese, a palavra transformada em fetiche no ambiente democrático é liberdade; ela será a reitora das leis, e não a Idéia do Bem. Recorramos ainda a Platão: “Num Estado democrático ouvirás, seguramente, que a liberdade é tida como a mais bela das coisas, e que, para quem é livre por natureza, este é o único Estado digno sob o qual se deva viver. (...) No entanto, o desejo insaciável de liberdade e o descuido das coisas mais importantes [típicos das sociedades democráticas] altera esse regime político e o predispõe à tirania. (República, VIII, 561, c-d).

P.S. Sei perfeitamente que eu e o Nougué, que anularemos o voto, estamos angariando a antipatia de muitos amigos católicos. Mas não podemos calar ao saber que vários padres ligados a movimentos tradicionais estão simplesmente fazendo panfletagem a favor de José Serra, omitindo não obstante os pontos fundamentais de sua atuação política recente e induzindo vários católicos ao milenarismo condenado desde sempre pela Igreja.