sexta-feira, 11 de junho de 2010

A dignidade sacerdotal (II): o sacerdócio de Cristo

Garrigou-Lagrange

Sidney Silveira
Após virmos, no texto anterior, que a união hipostática é o constitutivo formal do sacerdócio de Cristo, dada a plenitude de graça e glória deste estado, e também que o seu sacerdócio é perfeito e eterno em sentido próprio, enquanto o dos padres o é por participação, prossigamos ainda abordando alguns aspectos desse divino sacerdócio.

Um pergunta que ocorreu a muitos, em diferentes momentos da história da Igreja, foi a seguinte: porventura influi o sacerdócio de Cristo em cada uma das Missas que se celebram? Duns Scot e, depois dele, Molina, afirmavam que Cristo é o oferente principal porque instituiu o sacrifício da Missa e mandou que o oferecessem em seu nome, mas atualmente já não seria Ele quem oferece o sacrifício. O argumento destes dois teólogos que descambaram para a heresia é de que não se podem multiplicar, em Cristo Deus-Homem, os atos de sua oblação interna feita na Cruz.

Erraram rotundamente estes e outros teólogos que afirmaram coisas semelhantes — alguns deles inclusive transformando-se em grandes heresiarcas. A verdade católica diz que Cristo é o oferente não apenas virtual do sacrifício de todas as Missas, mas também atual, e não por uma espécie de multiplicação material de sua oblação interna, pois esta foi feita perfeitissimamente uma só vez na Cruz, como lembra-nos Garrigou-Lagrange, de quem extraímos os conceitos desta série de textos: a oblação de Cristo, dada a plenitude da união hipostática, foi eterna e permanente, razão pela qual um mesmo é (hoje e sempre) o oferente principal (Cristo), com a diferença de que o sacrifício hoje é incruento e não doloroso. Ademais, a satisfação dada por Nosso Senhor na Cruz é meritória para sempre. Tendo isso em vista, afirma o Concílio de Trento que “uma mesma é a hóstia e um mesmo é hoje o oferente pelo ministério dos sacerdotes” (Denz. 940). Sendo assim, Cristo é o oferente principal atual de todas as Missas.

Ademais, Santo Tomás (Suma, III, q. 62, a.5) afirma que a humanidade de Cristo é instrumento unido à divindade para que se dêem todos os efeitos sobrenaturais, e instrumento consciente e voluntário. Isto quer dizer que Jesus, como homem, quer concorrer fisicamente para os efeitos sobrenaturais que se dão em cada circunstância concreta. Daí dizer ali também o Aquinate que entre esses efeitos está o da transubstanciação e, por conseguinte, Cristo, como homem, quer toda transubstanciação que atualmente se realiza. Ele quis isto enquanto vivia como homem na terra, dada a sua ciência infusa e também o fato de que, mesmo na terra, já gozava da visão beatífica e previu e quis cada uma das Missas como aplicações posteriores do sacrifício da Cruz (Suma, III, q. 10, a.2; q. 11, a.1).

Vale também dizer que a oblação interna perdura em Cristo glorioso, sem interrupção. Assim, os efeitos atuais que têm a Cristo como causa subordinam-se ao sacrifício da Cruz. Daí ter afirmado Nosso Senhor, ainda na Cruz, que “Tudo está consumado”, razão pela todas as Missas aplicam — per participationem — os méritos da Paixão e têm a Cristo como oferente principal.

Em resumo, é certíssimo que Cristo — sacerdote eterno — queira dar-se em comunhão a cada um dos fiéis que o recebe, e mais certo ainda é o fato de que queira oferecer-se atualmente ao Pai, cumprindo os quatro fins do seu divino sacrifício: latrêutico (adoração), eucarístico (ação de graças), propiciatório (expiação) e impetratório (súplica).

Como se vê, por ser a participação de tão alto mistério de um sacerdócio divino, o sacerdócio dos padres tem uma incomensurável dignidade. Assim, os sacerdotes que, estando bem formados, aspiram a uma união efetiva com Cristo — para a qual Deus nunca deixará de dar graças proporcionadas a tão excelso fim —, certamente serão ministros de um "ato teândrico de infinito valor", como diz Garrigou no já citado A União do Sacerdote com Cristo, Sacerdote e Vítima.

O grande sacerdote e teólogo francês encerra esta parte de seu livro lembrando que o sacrifício da Missa (que tem a Cristo como oferente principal atual) e o da Cruz são o mesmo substancialmente, embora difiram os modos de oblação: na Cruz ela foi cruenta, dolorosa e meritória; agora é incruenta, sacramental, indolor e não meritória, dado ser a aplicação da satisfação dos méritos infinitos... da Paixão e morte na Cruz.