terça-feira, 11 de maio de 2010

As relações entre a inteligência e a vontade (III)

Sidney Silveira
A superioridade necessária da inteligência em relação à vontade é quanto ao ser; a superioridade acidental (e episódica) da vontade em relação à inteligência é quanto ao operar. Fundamentalmente, ninguém é capaz de querer o que, em absoluto, não entende, pois no ato de escolha está sempre implicado algum grau de intelecção do bem querido pela vontade. Sendo assim, quanto melhor formada seja uma inteligência, mais bem aparelhada estará a vontade para fazer boas escolhas. E quanto pior formada seja uma inteligência, mais mal aparelhada estará a vontade e, por conseguinte, mais propensa a escolher e agir mal. De outra parte, após a vontade exercer o seu ato de escolha alimentada pela inteligência, põe ela em marcha todas as outras potências, inclusive a mesma inteligência, como veremos noutra oportunidade.

Em suma, assim como há uma precedência do problema metafísico em relação ao gnosiológico — como assinalamos no primeiro dos textos de uma série sobre as incongruências do criticismo kantiano —, também há uma precedência do problema gnosiológico em relação ao moral. Por isso e não por outra coisa, a imputabilidade de uma pena é maior ou menor de acordo com o grau de consciência do cometimento do delito. Noutra formulação, poderíamos dizer que a má-ação será tanto pior quanto mais seja levada a cabo com perfeita anuência, ou seja: é quando o delinqüente quer (e pratica) os seus crimes sabendo perfeitamente o que são.

A interpenetração e causalidade mútua da inteligência e da vontade no ato livre do homem é doutrina da melhor cepa tomista. Com ela o Aquinate não apenas pôs as coisas em seus devidos lugares, corrigindo com precisão equívocos filosóficos anteriores, mas sobretudo evitou uma série de erros gravíssimos na análise do ato moral — provenientes de posturas voluntaristas e/ou nominalistas. Nesta matéria, particularmente, o equilíbrio a que chegou Santo Tomás é de uma beleza extraordinária, e foi enorme desgraça para a filosofia ter historicamente perdido este tesouro.

Pois bem, disse-se acima que a precedência da inteligência com relação à vontade é da ordem do ser; a da vontade com relação à inteligência, da ordem do operar. Vejamos agora mais de perto algumas conseqüências disto:

> De fato, os atos da vontade (como movimento de um apetite a um fim querido) se estendem a todo o domínio da práxis. Isto quer dizer que o homem é capaz de escolher os modos de sua ação, in primis, de acordo com aquilo que quer;
> No entanto, a vontade não irrompe em seu ato próprio de escolha sem uma intervenção da inteligência que lhe dê sentido e orientação. Isto quer dizer que a práxis tem a sua coluna fundamental na inteligência. Em resumo: não existe verdadeira práxis sem noésis, razão pela qual a ação do homem é, essencialmente, especulativo-prática, e não meramente prática.

Negar esta realidade é conceber o homem como um ser esquizofrênico que deseja o que não entende. E não entende justamente porque, neste caso, haveria uma inadequação fundamental entre a inteligência e a coisa* (como no caso dum paciente de Simão Bacamarte, em famosa novela de Machado de Assis citada neste trecho de aula). Ou então concebê-lo como um mero feixe de instintos cegos que se atualizam por pulsões nascidas de uma instância inconsciente, conforme quer a psicanálise. Mas tanto num como noutro caso há um reducionismo inaceitável, pois a experiência mostra com abundância de dados que estas realidades indicam patologias distintas — e não se pode tomar a essência de algo justamente por suas deficiências acidentais.

As filosofias moderna e contemporânea — que por não terem base metafísica há séculos orbitam no horizonte do imanentismo gnosiológico, em suas diferentes variáveis — infelizmente perderam estas distinções. Elas conseguiram perpetrar teorias esquizóides e solipsistas que nem mesmo os maiores devaneios da escolástica tardia e do renascimento, alimentados pelos malefícios de Scot e Ockham, conseguiriam imaginar. Se, para a contemporaneidade, ser, conhecer e querer se tornaram realidades incomunicáveis, isto se deve ao fato de ter ela voltado às costas à metafísica dos graus intensivos de participação no Ser, de Santo Tomás de Aquino. Triste história de uma queda.

Se em Tomás de Aquino há uma perfeita harmonia entre ser, entender e querer, é porque a sua filosofia não fechou as portas à transcendência. E não fechou porque a sua metafísica, ao contrário do que presumiu Heidegger de todas as metafísicas do Ocidente, não se resume ao ente, mas sustenta-se na coluna do Ser sem o qual sequer haveria entes — o Próprio Ser Subsistente que, na verdade, transcende aos entes. Neste contexto, vale frisar o seguinte: é apenas inserida no Ser que a inteligência mostra toda a sua hegemonia sobre a vontade; por outro lado, despojada do Ser ou alheia a ele, a inteligência desarticula-se e dá espaço para que a vontade labore absurdamente numa espécie de buraco negro.

O resgate da metafísica do Ser de Santo Tomás é, portanto, um imperativo para os incríveis tempos atuais em que a civilização simplesmente se esboroa. Tempos em que os maiores absurdos são praticados pelos indivíduos e pelos Estados tendo como base as teses mais abstrusas.

Ora, bem mais do que um bípede implume, o homem é um animal racional — na medida em que, nele, até mesmo a vontade é apetite intelectivo do bem. Restituamos, pois, a inteligência a seu devido lugar no composto humano, e prestaremos um grande serviço ao mundo. Inteligência que, como destacava um famoso título de Marcel de Corte já na década de 60, está em perigo de morte**.

* Lembremos que, segundo Santo Tomás, a verdade é a adequação entre a inteligência e a coisa. Da realidade contrária, a inadequatio, falaremos amiúde noutro texto.
** La intelligence em Péril de mort é o livro do filósofo belga a que aludimos.