quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Avatar dos infernos



Sidney Silveira
A simples visão de três minutos de um “trailler” do filme Avatar bastou-me para verificar que se tratava de algo intrinsecamente anticristão, repleto de mensagens subliminares, além do péssimo gosto da “criação” daqueles ETs azuis de fisionomia humana deformada — com orelhas alongadas, narizes achatados, caninos vampirescamente pronunciados, corpos íncubos e súcubos, esguios e seminus, e rabos compridos como os de um diabo de Gustave Doré. A leitura posterior de algumas sinopses me horripilou, pois fui verificando o quanto a película foi meticulosamente pensada, até os mais ínfimos detalhes, para incutir símbolos anticristãos na cabeça das pobres almas que entram no cinema em busca de “entretenimento”, e saem intoxicadas, na imensa maioria das vezes sem o saber. Não à toa, reportagens do mundo inteiro vêm relatando que inúmeras pessoas mostram intenções suicidas após assistir Avatar. Encantadas com a maravilhosa lua do planeta Polifemo chamada Pandora (nomes sugestivos, como a propósito o do próprio filme), não suportam voltar a este mundo de meu Deus; prefeririam dar cabo da própria vida a encarar o real World.

O filme de James Cameron não é como os que Luis Buñuel compusera nos anos 60, claramente anticatólicos (obras como A Via Láctea, Simão do Deserto, etc.), embora com uma riqueza de detalhes que hoje escapariam até ao católico medianamente culto, em geral desconhecedor do Magistério e da história da Igreja anteriores ao Vaticano II. Cameron é mais sutil do que Buñuel, talvez em razão do ocultismo de caráter gnóstico que se esconde nos detalhes de sua obra.

Para quem não sabe, Polifemo foi o Ciclope (gigante de um olho só, filho do deus Poseidon, ou Posídon) enganado pela astúcia humana de Odisseu e de seus companheiros, no famoso poema de Homero. Encarna a semidivindade traída pela maldade do homem. Pandora, por sua vez, de acordo com a mitologia grega, foi a primeira mulher, criada como punição aos homens em razão da ousadia de Prometeu em roubar o fogo divino. O irmão de Prometeu, chamado Epitemeu, extasiado com a sua beleza, presenteou-lhe com uma ânfora ou caixa que continha todos os males do mundo, e que lhe havia sido dada pelos deuses. Segundo algumas traduções, no fundo da caixa estaria a esperança (elpís). Seja como for, o fato é que Pandora não leva em conta as admoestações de Zeus e abre a caixa, liberando toda a sorte de males sobre os homens.

Como se vê, os nomes escolhidos para o planeta e a lua em que a história se passa já nos indicam que se trata de um universo em que o homem é absolutamente mal visto, dotado de uma natureza corrompida, ardilosa, malévola. E não, obviamente, como a obra-prima da criação, feito à imagem e semelhança de Deus, embora decaído pelo pecado. Mas deixemos por ora este detalhe inicial e vamos ao argumento do filme.

No ano de 2154, um ex-militar chamado Jake Sully, paraplégico, é enviado a Pandora, onde a humanidade pretende explorar o rico minério unobtanium, que provavelmente solucionará a crise energética na Terra. Dada a alta toxidade da atmosfera de Pandora, os humanos que vão para lá precisam ter a sua consciência ligada ao Programa Avatar, que lhes permite “encarnar” num corpo biológico controlado à distância (com DNA híbrido), imune ao ar letal de Pandora. Ocorre que os nativos da lua, chamados Na’vis, são o obstáculo para a extração do precioso minério do lugar, razão pela qual, em tese, seriam eles os inimigos a vencer. Mas Jake Sully, já em seu novo corpo, é salvo por uma nativa Na’vi chamada Neytiri, o que acaba levando-o a adotar a forma de vida dos Na’vis e lutar contra os “invasores do céu”.

Até aqui, tudo parece mais uma bobagem hollywoodiana de gosto duvidoso (embora retratada com grande requinte técnico e efeitos especiais impressionantes), mas, como veremos, as coisas não são tão simples quanto parecem.

Baseando-nos num instigante texto publicado no site Stat Veritas, lembramos que é próprio das heresias gnósticas sobrevalorizar a razão, no afã de conhecer os arcanos divinos sem nenhum auxílio da Graça, mas pelo próprio poder especulativo da inteligência humana. Em geral, esse tipo de heresia ofende a Deus Pai, ao propor uma ordem totalmente distinta da que foi por Ele prevista — e provista — desde a eternidade. No caso do filme Avatar, o “homem novo” inventado por Cameron recebe até um novo corpo, já não propriamente humano, muito melhor do que o atual. O referido texto do Stat Veritas nos aponta, com grande argúcia, para os seguintes aspectos das heresias do gnóstico Joaquim de Fiore, condenadas solenemente no IV Concílio de Latrão, que estão presentes no filme:

1- O Terceiro Império seria a última fase da história universal, superadora das anteriores, na qual enfim chegaríamos à perfeição;
2- Essa nova etapa seria capitaneada por um caudilho, que apareceria como o seu afortunado fundador;
3- Esse caudilho, por sua vez, teria um precursor, da mesma forma como Cristo teve a João Batista como anunciador;
4- Enfim, o símbolo máximo dessa Nova Era seria a realização de uma sociedade de indivíduos espiritualmente autônomos (alguma semelhança com as idéias liberais?), que não precisariam da intermediação de instituições humanas — no caso, a Igreja e seus sacramentos — para relacionar-se com Deus.

Em Avatar, vejamos cada uma dessas etapas gnósticas, assim codificadas:

1- Uma nova fase da história humana sepultará a atual e se dará em outro planeta.
2- O caudilho que fundará essa nova era é Jake Sully (ele próprio fala em “renascimento”, no filme). Sully torna-se líder logo após Pandora quase ser destruída pela maldade dos homens, que por sua vez já tinham arrasado a Terra. Ele não nasce Salvador por delegação divina, mas se faz salvador.
3- O precursor do caudilho é a cientista Grace Augustine. Anotem bem o nome: Grace Augustine! Ora, para quem não sabe, Santo Agostinho é cognominado “Doutor da Graça”. Só que, no caso cristão, a Graça é o auxílio divino sem o qual o homem não pode manter-se no bem, enquanto a Grace Augustine da película é justamente o contrário disto: encarna a intelectual, a cientista que detém o conhecimento a partir do qual o “salvador” Jake Sully poderá começar uma nova era. Como se vê, os pólos se inverteram: a Graça que Santo Agostinho tão bem retratou vem de cima para baixo, de Deus para o homem, e é gratis dada; a Grace Augustine, por sua vez, representa o poder do próprio homem para “salvar-se”, para chegar por suas próprias forças ao conhecimento que o libertará das amarras do mal. Nada mais gnóstico!
4- O quarto dos símbolos joaquinistas, o da espiritualidade autônoma, se verifica pelo fato de os Na’Vis não necessitarem de nenhuma instituição “eclesiástica”. Quando Jake está ao lado de Neyriti, diz a todos: “Unimo-nos ante a deusa “Eywa”, e, depois, toda a comunidade dá-se as mãos em frente à “árvore dos espíritos” para rezar, ou coisa que o valha. Como diz o já citado texto do Stat Veritas, se cumpre assim a fantasiosa idéia de uma comunidade que vive em harmonia, sem Estado, sem Igreja e sem polícia, na qual todos adoram a natureza e, por isso, vivem em paz. Uma pax mundi absolutamente naturalista.

A negação da obra de Deus faz com que Cameron invente um novo mundo, com um novo homem, novas plantas, novos animais e um novo idioma — um mundo (no filme) muitíssimo mais satisfatório do que este criado por Deus. E esta negação da maravilha da Criação não deixa nada de pé; alcança todos os âmbitos da realidade e pinta-os em cores brilhantemente surreais. Não me admira saber que muitas pessoas, provavelmente desprovidas de espiritualidade, pensem em se matar após ver o filme. Aquilo para elas deve parecer coisa melhor.

É evidente também que os Na’vis, ao fazer as suas pregações e orações sob uma árvore mágica, unindo-se assim à “divina” natureza, vivem na prática uma espécie de panteísmo — algo totalmente anticristão. Trata-se de uma “energia” que os une à “deusa” e elimina, pois, qualquer tipo de mistério (já que os arcanos divinos haviam sido codificados pela ciência humana). Não há, aqui, nenhum espaço para o mistério da fé que salva, e muito menos para um caminho rumo à transcendência. Estamos, pois, imersos no imanentismo panteísta tantas vezes condenado pela Igreja.

Os signos do ecologismo neopagão, do feminismo antiespiritualista e do indigenismo do tipo ‘Nova Era’ pupulam em Avatar. Assim como o fato de que, nele, “a natureza vence a Graça”, diferentemente do que propõe o dogma cristão. Ora, a Doutora Graça (Grace Augustine) é alguém que, embora detenha uma série de conhecimentos, não consegue conduzir o homem a Deus. É uma simples ponte para Jake chegar ao outro mundo — mundo físico, é claro —, e não em busca de Deus, mas sim do saber científico “salvífico”. O homem, aqui, se converte num Super-Homem que não precisa da Graça. E por que se diz que a natureza vence a Graça? Vejamos o que afirma o excelente articulista Flavio Mateos:

“Porque la Gracia, herida de muerte por los hombres, es levada al reino de la natureza deificada, para ver si la ‘diosa’ le puede salvar la vida. Y por supuesto la Gracia se muere. Allí no tiene nada que hacer. Eso sí, antes de morir hace su profesión de fe diciendo, con cara iluminada: ‘Me uní a ella. Es real’; es decir, vio la diosa [natura] cara a cara”.

Uma espécie de messianismo carnal, sensual, é outra das características de Avatar. Mas não entrarei em detalhes sobre isto para não me estender por demais, pois nesta matéria é inconveniente fornecer pormenores, para não excitar a imaginação de ninguém. É pelas imagens que labora o inimigo do gênero humano e não serei eu a dar-lhe uma mãozinha para fazer alguma alma cair. Já me bastam os meus próprios pecados e a consciência de com eles ter ofendido tanto a Deus.

É burlesco que em Avatar a criatura superadora do homem (ética, física e “espiritualmente”) se assemelhe a personagens que a iconografia consagrou como demônios íncubos ou súcubos, com dente de vampiro, orelhas que mais parecem chifres, corpos perfeitos e atléticos (ou alguém viu por aí um Na’vi obeso ou com defeitos físicos?) e rabos compridos. Perdida a Graça, da qual os sacramentos ministrados pela Igreja são veículo, não resta ao homem senão desumanizar-se, e nisto foi muito preciso Cameron: escolheu uma imagem adequada, deformada, com a luciferina diferença de que a pintou como algo superior a nós. E vale também dizer que a morte da "Graça" nos remete à idéia de um mundo que se fechou por completo ao influxo da ação divina, mundo no qual as criaturas racionais, para ser plenas, simplesmente não precisam de Deus.

Indico efusivamente a leitura do instigante artigo do Stat Veritas — um site que presta um inestimável serviço a todos os católicos que ainda se preocupam com a situação aterradora da Igreja, que além do “aggiornamento” doutrinal pós-Vaticano II permite a seus órgãos oficiosos protagonizar novidades cada vez mais surpreendentes. A mais recente é esta, veiculada em todo o mundo durante o carnaval:

O L’Osservatore Romano acaba de eleger os 10 melhores álbuns de música pop de todos os tempos, entre os quais está Thriller de Michael Jackson, The dark side of the moon, do Pink Floyd, e Supernatural, do guitarrista Carlos Santana. São, de acordo com o jornal do Vaticano, discos dignos de ser levados para uma ilha deserta!

Certamente não para a Ilha dos Bem-Aventurados da República de Platão. Quem sabe sejam dignos de ser levados à Pandora do filme Avatar... Ou ao Tártaro.