segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Algoritmos da ingratidão


Sidney Silveira

A ingratidão tem uma vasta tipologia especificada pelos motivos que a conformam. É-se ingrato por malícia; é-se ingrato por fraqueza; é-se ingrato por ignorância. Estas três espécies gerais da ingratidão se subdividem em incontáveis tipos mais ou menos deletérios, os quais muitas vezes se mesclam e cooperam de diferentes maneiras para fazer arraigar na alma de alguém este vício.

Exemplifiquemos:

> O estúpido — enquadrado na subespécie da ignorância — não pode ser grato;
> O susceptível — enquadrado na subespécie da fraqueza  não pode ser grato;
> O invejoso — enquadrado na subespécie da malícia  não pode ser grato.

Enfatize-se que se está a falar do hábito da ingratidão, e não de atos isolados dela, embora estes últimos representem sinais de fumaça a indicar o seguinte: nalgum lugar crepita um fogo horroroso, o fogo da doença que despersonaliza a pessoa e a torna refém de emoções desgovernadas, as quais vão aos poucos afastando a inteligência do centro da personalidade. Em suma, o ingrato é derrotado por paixões que o fazem não enxergar a beleza dos valores morais. Este verdadeiro aleijão gnosiológico cria uma deformidade monstruosa na vontade, que, a partir de certa altura, passa a apetecer o bem caoticamente — sem ordená-lo de acordo com os graus de ser pelos quais se faz presente na realidade.

Os algoritmos conformadores da ingratidão são análogos à tabela periódica da química, na qual os elementos estão sistematicamente dispostos de acordo com as suas propriedades. No caso de que se trata, a mescla entre graus de impureza no ato propriamente humano contribui para formar-se o hábito da ingratidão; conhecer, pois, o magma funesto dessas combinações é imprescindível para o estudioso da alma humana elaborar o juízo que aquilatará, em cada circunstância, o tamanho desta enfermidade moral. Tais misturas são os reais ingredientes da ingratidão; se forem compreendidas a contento, podem até trazer a cura a quem padece deste mal.

Se o sujeito é colérico (subespécie da fraqueza), como poderá ser grato? Se o sujeito é mentiroso (subespécie da malícia), como poderá ser grato? Se o sujeito desconhece, seja por que motivo for, a natureza do benefício com o qual foi agraciado (subespécie da ignorância), como poderá ser grato? A arquitetura destes conceitos pressupõe a codificação precisa da hierarquia dos males morais e a arte de identificar circunstâncias atenuantes ou agravantes capazes de trazer a clara visão dos graus de hediondez da ingratidão, que a tornam mais ou menos culpável.

O psicólogo tarimbado cuja linha seja realista é capaz de verificar, com relativa facilidade e precisão, as más inclinações de uma pessoa. O vício da ingratidão se encontra entre elas e aponta de maneira certeira para outros vícios mais graves. Perceber isto não é obra do acaso, mas do estudo da natureza metafísica do ato humano — a qual está descrita de maneira absolutamente sublime na IIª-IIª da Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino. Aqui, como este breve texto não trata de teologia, evito aprofundar o chamado “estado de graça”, o qual traz à alma uma sanidade grandemente facilitadora da compreensão dos atos propriamente humanos, levados a cabo pela inteligência e pela vontade.

Seja como for, a um ingrato só se deve retribuir de duas maneiras: com perdão e distância. O perdão conformado pelo amor a algo maior, a começar pela própria sanidade de quem foi vítima de ingratidão; e a distância por uma questão de prudência. Qualquer outra reação pode fazer aflorar ódios tão ou mais difíceis de curar que a própria ingratidão.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Arte e audácia

Sidney Silveira

AUDÁCIA É UMA QUALIDADE comumente encontrável entre canalhas de estrita observância, assim como entre fanáticos, genocidas e psicopatas em geral. Em síntese, trata-se da perversão da virtude da coragem, a qual é especificada pelo fim intrinsecamente bom da ação.

Santo Tomás sabia das coisas quando explicou de que modo a audácia pode opor-se à virtude cardeal da fortaleza.

Apenas em sociedades infantilizadas, que perderam completamente o sentido superior da arte (como reta razão no fazer orientada a um bem real), é possível enumerar a audácia entre as qualidades louváveis num artista.

No tempo em que ser artista se resume a continuamente afrontar o mundo em busca de novos "paradigmas", não é de estranhar que um dia alguém apresente como arte o ato de escarafunchar — em público — o ânus alheio.

Sim, no universo mental dos audazes, a arte cedo ou tarde acaba por ser identificada com o ato de fazer merda ou de fuçar merda.