sábado, 19 de outubro de 2013

Chico, Caetano e Dorian Gray



Ao amigo Vítor Pimentel, jurista nato.
Sidney Silveira                                       
A honra, segundo Santo Tomás de Aquino, é maximum inter bona externa, ou seja, o maior dos bens exteriores do homem. E o é na medida em que inclui o direito à boa fama e à preservação da própria intimidade — que todos têm. Não por outro motivo, a difamação é uma espécie de grave roubo da reputação alheia cujos malefícios podem destruir a vida de uma pessoa. Daí dizer o grande tomista Domingo de Soto, na esteira do mestre medieval, que a boa fama é causa da honra, a qual, por sua vez, não é outra coisa senão a ordenada estimação do próprio bem perante os outros. Se casualmente essa auto-estima se desordena, transforma-se em ambição, em vanglória.

O comedido zelo pela própria reputação é fruto do pudor natural, aqui entendido como instinto protetor que torna o homem precavido contra a exposição indevida de sua privacidade. A propósito, quando falta esse pudor natural (aidos, na terminologia de Aristóteles), o caráter se deteriora. A pessoa então se torna incapaz daquele recolhimento sem o qual ter vida interior é quase impossível. Mas não percamos o fio da meada, para o que nos interessa destacar neste breve texto: mesmo as pessoas públicas têm o direito a não deixar a sua vida particular ser devassada, e, mais ainda, cabe-lhes a decisão intransferível de escolher que instâncias de suas vidas elas querem ou não tornar públicas. Isto nada — absolutamente nada — tem a ver com “censura”, no sentido político do termo.

Uma sociedade liberal que idolatra a liberdade de expressão e a confunde tristemente com licenciosidade e desrespeito ao próximo não consegue entender o seguinte: a vida privada de uma pessoa, entendida como o universo de atos e fatos particulares conscientes, é inviolável em si mesma, conforme estabelece o Artigo 21 do Código Civil brasileiro, ao passo que a liberdade de expressão pode e deve ser restringida em várias circunstâncias, seja por razões de ordem moral ou legal, para desespero de filósofos e juristas liberais. Assim, a título de mero exemplo, ninguém tem o direito de — no exercício de sua liberdade de expressão — prestar falso testemunho para lesar o próximo. Como se pode deduzir, no que tange aos atos da razão prática, instância deliberativa reitora da ética (ciência do bem agir), o direito a preservar a própria intimidade é mais fundamental que o direito à liberdade de expressão, sobre a qual falaremos adiante.

E ele é mais universal no que diz respeito às ordens gnosiológica e moral, pois o íntimo do homem é justamente o que distingue a sua essência, a saber, os atos da inteligência e da vontade: entender e querer. Portanto, se uma pessoa, no exercício dessas faculdades superiores de sua alma, delibera manter parte da própria vida oculta do grande público, tal decisão é por si, e em si, intocável. A liberdade de expressão de quem quer que seja não pode ultrapassar este limite, o que implicaria invadir a liberdade alheia, e nunca é demais lembrar que a liberdade de um começa quando termina a de outro. No dia em que a lei permitir isto, será o agônico sinal de que a privacidade das pessoas se tornou uma impossibilidade política, e o direito universal à xeretagem, à bisbilhotagem, virou norma jurídica. Por aí vemos como a questão é gravíssima, pois está em jogo a liberdade em sua real acepção.

Com vistas a tornar a questão um pouco mais clara, formulemos um princípio de fundo axiológico no espírito da escola tomista: em caso de colisão entre dois direitos fundamentais, prevaleça o que mais se aproxime da lei natural, pois este valerá mais. Ora, a lei natural tem como insumo a sindérese — hábito inato dos primeiros princípios da razão prática —, segundo a qual o homem fundamentalmente busca para si o bem e procura fugir do mal. Levando-se em conta este fator evidentíssimo, torna-se claro que zelar pelo próprio nome é circunstância completamente afim à lei natural, assim como o dever de não sujar o nome alheio. Por sua vez, a liberdade de expressão sequer pode ser considerada um “princípio”, seja especulativo ou prático. Vejamos os porquês.

Confundir “liberdade” com “liberdade de expressão” é análogo a confundir a forma do ente com uma de suas operações, ou seja, é tomar uma parte pelo todo, o acidental pelo substancial. Erro metafísico primário! Em breves palavras, o homem não é livre porque se expressa, mas se expressa — ou não — porque é livre. Não troquemos, pois, a verdadeira liberdade, cuja instância inexpugnável é a vontade, apetite intelectivo do bem, por um de seus aspectos exteriores e metafisicamente contingentes: a expressão de atos livres. A propósito, é este um dos maiores dramas das sociedades contemporâneas, tataranetas do paleoliberalismo pré-Revolução Francesa: ter da liberdade a mais equívoca das noções, confundir a sua sublime essência com uma das propriedades que emanam dela.

Formulemos de outra maneira: o essencial da liberdade não é escolher, mas poder escolher, de acordo com critérios subministrados pela inteligência. Em suma, o que distingue a liberdade é essa potência tendencial intelectiva de eleger voluntariamente isto ou aquilo — e confundi-la com o seu ato próprio é como supor que o cavalo é cavalo porque relincha, e não o contrário, que o homem é homem porque fala por meios de signos inteligíveis, e não o contrário.  Reiteremos: a liberdade, por radicar na vontade, não pode ser coagida em sua imaterialidade. Um torturador pode até constranger alguém a confessar o que não fez, ou então a calar-se, mas não pode coagir a sua vítima a não amar o próprio filho, por exemplo. A vontade, dada a sua natureza, é livre em absoluto porque ninguém pode constrangê-la. Daí que a liberdade de expressão possa na prática ser violentada, mas a verdadeira liberdade humana é incoagível, não pode ser ferida em sua essência imaterial, não pode ser movida exteriormente a fórceps, por ninguém. Nem mesmo Deus o pode fazer; Ele pode, isto sim, é movê-la necessariamente apresentando-lhe um bem sumo, irresistível, e a isto os teólogos chamaram de præmotio divina.

Sou absolutamente insuspeito para defender qualquer coisa em comum com os Srs. Chico Buarque e Caetano Veloso — pessoas por quem não nutro nenhuma admiração. Mas diga-se que a sua grita contra as chamadas “biografias não autorizadas” nada tem de censura, pois diz respeito a algo distinto e bem mais fundamental: o direito de toda pessoa a preservar no âmbito da intimidade alguns fatos de sua própria vida. Foi, por exemplo, no exercício desse direito natural que Machado de Assis mandou uma jovem parenta destruir enorme quantidade de cartas que estavam nalgumas caixas. A posteridade jamais conhecerá alguns fatos da vida do Bruxo do Cosme Velho relatados neste epistolário perdido, porque assim ele livremente decidiu. E nem por isso devemos nós chamá-lo de “censor”.

Suponhamos, a mero título de procedimento dialético, que os Srs. Chico Buarque e Caetano Veloso guardem vexatórios esqueletos dentro do armário. Esta é uma escolha inalienável deles! A propósito, durante anos Dorian Gray manteve no sótão a pintura hedionda que representava a sua deformidade moral, e não foi obrigado a expô-la aos olhos do mundo. Ninguém senão o próprio Dorian tinha o direito de destruir o quadro, apunhalá-lo na tentativa desesperada de apagar a consciência dos seus atos moralmente maus, ali retratados em aspecto macabro.

Tiremos, pois, a seguinte lição da obra-prima de Oscar Wilde: a hipocrisia é a última fortaleza dos homens de má-consciência.

Mas nem mesmo a hipocrisia, que radica na liberdade humana defraudada por hábitos viciosos, pode ser invadida em nome da liberdade de expressão.