sexta-feira, 3 de junho de 2011

A Reforma Ortográfica — um Acinte à Sensatez (I)



Carlos Nougué


Deixada à deriva, sem gramática, como querem muitos linguistas que, porém, defendem sua tese sem nenhuma deriva gramatical, a língua seria como a realidade-rio de Heráclito: seria puro fluxo, a ponto de não se poder falar duas vezes a mesma língua...


Ora, tal anseio, compartilhado de certa forma por híbridos de linguistas e gramáticos, não passa de fato do mais puro heraclitismo, ou seja, de uma negação da estabilidade do real. Mais simplesmente, é uma pura negação do óbvio: a gramática é parte intrínseca da linguagem; é o dique ou comporta sem a qual a língua-rio de fato fluiria e fluiria sem permanência alguma. Uma prova? A mais chã: que pai, que mãe, se dotados ao menos do ínfimo senso natural de cuidado e educação da prole, não corrigirão seu filho se ele disser algo errado? Se o pequeno disser, por exemplo, “zinza” em vez de “cinza”, hão de calar-se os pais e deleitar-se com mais essa novidade de uma permanente deriva linguística?


É tal a obtusidade daquela posição “científica”, está a tal ponto obnubilado o intelecto de seus proponentes, que estes nem conseguem ver que com tal língua-rio sem gramática nem sequer se poderia propor sua absurdidade simplesmente porque nem sequer haveria a linguagem. Bem sei que retrucarão: “Mas as línguas mudam constantemente...” E quem o nega? Um rio de tanto bater numa comporta acaba por abrir-lhe fendas e traspassá-la com mais ou menos ímpeto. Com mais ímpeto quando há apenas fiapos de civilização e a gramática natural da língua acompanha tal tenuidade: essa é a razão por que as línguas indígenas ou tribais tendiam (e tendem) incessantemente à entropia. Com menos ímpeto quando há verdadeira civilização universal (ou tendente à universalidade) e a gramática da língua se alça de componente natural a arte: era o caso da Cristandade do século XIII e sua língua científica e altamente normatizada, o latim. (Aliás, a decadência civilizacional representada pelo fim da Cristandade não poderia ficar sem efeito na língua, que, adornada o mais das vezes de beletrismo, de ordinário já não alcançaria mais que um brilho de ouropel.)


A gramática que, conquanto decorrente da gramática natural da linguagem, a sobreleva é propriamente arte. É bem verdade que, em razão da mencionada decadência linguística que se seguiu ao fim da Cristandade, a arte da gramática o mais das vezes recaiu, também ela, em beletrismo, ou seja, em atrelar a língua ao carro da literatura e aos caprichos dos literatos. Muito se teria para falar disso; mas não podemos fazê-lo aqui. Contentemo-nos com dizer, aqui, que ter uma arte gramatical falha é patentemente menos daninho que não ter nenhuma arte gramatical, porque, como visto, sem esta a língua tende mais impetuosamente a rio heraclíteo.


Pois bem, a língua escrita é o aspecto material da linguagem que de si mais capacidade tem não só de conservar-se, mas de conservá-la. Não é fato que o grego ático de um Platão não nos teria chegado se não fora a escrita? E, como nosso tema aqui é em verdade a última reforma ortográfica que vitimou a língua portuguesa, demos um salto e digamos que a grafia é a côdea deste aspecto material, e a ortografia a parte da arte gramatical que dá a essa côdea consistência e permanência no tempo.


Dizia Aristóteles, pouco mais ou menos, que é preferível uma lei imperfeita mas duradoura a uma sucessão de leis melhores mas efêmeras: porque, dizia ele, não se podem educar os cidadãos ético-politicamente sem o aprendizado de uma legislação estável. Conquanto tenhamos de matizar tal afirmação (o que, porém, é assunto para outro lugar), podemos todavia aplicá-la, perfeita e proficuamente, à ortografia. Com efeito, uma ortografia estável no tempo se torna um êthos, um costume: o pai a ensina ao filho, que a ensina ao neto daquele, que a ensina ao bisneto do primeiro, e assim sucessivamente. O que sucede se se perde tal permanência, tal estabilidade no tempo? O que sucede a alguém que aos 60 anos tem experimentar, com um travo amargo, a terceira ortografia de sua vida, como é o nosso caso? E a uma criança recém-alfabetizada que de súbito tem de aprender uma nova ortografia?


Vejamos as razões alegadas para a atual reforma ortográfica, e constataremos que ela não passou propriamente de um crime contra o ético.


a) Uma língua ortograficamente unificada em escala internacional (Brasil, Portugal, países africanos) tem mais força nesse mesmo âmbito.


b) Era preciso “simplificar” a ortografia, num plano superior ao da reforma da década de 1970.


Respondamos, ainda brevemente.


a1) Uma língua pode ter mais força em escala internacional por dois únicos motivos:


• como o latim medieval, por dar voz a uma civilização realmente superior, no caso a Cristandade, sobretudo a do século XIII;


• como o inglês atual, por dar voz a uma civilização mais poderosa econômica, política e militarmente, no caso a anglo-saxã.


(E aquele latim está para este inglês assim como o filosófico-teológico está para uma nota fiscal... ou para um míssil.)


a2) Simples, como vimos, é a ortografia que perdura. Mas demos, sem conceder, que fosse preciso simplificar a ortografia portuguesa. Então respondam os feitores da atual reforma ortográfica:


• Por que eliminaram o trema se esse sinal diacrítico simplificava enormemente o aprendizado da correta pronúncia de que, qui, gue e gui? (E não se argua que os portugueses já o tinham eliminado: terá sido a única coisa boa que fizeram nossos “terríveis” colonizadores?)


• Por que se deram ao trabalho de elaborar a seguinte e “simplicíssima” regra da acentuação do hiato: “Acentua-se a segunda vogal do hiato quando for i ou u tônicos, se sozinhos ou seguidos de s na mesma sílaba, desde que não comece por nh a sílaba subsequente nem contenha ditongo decrescente a antecedente”, regra aumentada e complicada com respeito à regra da ortografia anterior para beneficiar, pelo que lembramos, tão somente três palavras (“feiura”, “baiuca” e “Bocaiuva”)?


Por que eliminaram acentos diferenciais tão simplificadores do entendimento da escrita como o acento agudo na terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “parar”, concedendo ainda, contudo, a existência a alguns poucos? Veja-se como tal eliminação contribuiu para uma grande “simplicidade”: “Greve para São Paulo”; “Pedro para para pensar”...


• Por que eliminaram a maioria dos acentos diferenciais, deixando porém para algumas poucas palavras privilegiadas a honra de tal mitra? Por que, ademais, se decretou que se pode pôr, opcionalmente, o circunflexo diferencial sobre “fôrma” para distingui-lo de “forma”, e não se deu tal possibilidade a toda e qualquer palavra passível de confundir-se com uma homógrafa sua?


• Por que, se se tratava de simplificar, não acabaram com o hífen ou quase isso, um pouco ao modo da ortografia espanhola? Pior:


▪ Por que, entre as palavras compostas de três ou mais palavras ou vocábulos, as que não nomeiam animais, vegetais e patentes militares perderam os hifens (como “cor de burro quando foge”, “folha de flandres”, “ponto e vírgula”, “mão de obra”, “pé de valsa”), à exceção de cinco privilegiadas (“cor-de-rosa”, “água-de-colônia”, “mais-que-perfeito”, “arco-da-velha” e “pé-de-meia”)?


▪ Por que as palavras compostas de duas outras (como “para-choque”, “para-raios”, “guarda-chuva”) permanecem com hífen e não assim cinco e apenas cinco delas (“paraquedas” e suas três derivadas e “mandachuva”)?


▪ Entre as palavras compostas por prefixação, a maioria daquelas em que a última vogal do prefixo é igual à vogal inicial da palavra que se lhe segue não levava hífen na ortografia anterior, mas sim na atual (como “micro-ondas”, “anti-inflamatório”, etc.). Por quê?


▪ Ao contrário, as palavras compostas por prefixação em que a última vogal do prefixo é diferente da vogal inicial da palavra que se lhe segue levavam hífen na ortografia anterior, mas já não na atual (como “infraestrutura”, “autoexame”, etc.) Por quê??


▪ E por que, contra toda a nossa tradição ortográfica, se criaram monstrengos como “coerança”, “coerdeiro” e que tais, se, muito longe de simplificar, eles complicam demasiadamente o ato da leitura?


Poder-se-iam multiplicar as citações das aberrações nada simplificadoras, mas altamente perturbadoras, da recente reforma ortográfica. Ainda a bem da brevidade, porém, consideremos bastante a amostra acima, e concluamos este breve artigo.


O que levou efetivamente a uma reforma ortográfica tão antiética? Certamente uma conjunção complexa de fatores.


1) A patente decadência civilizacional.


2) A crescente e nefasta tendência dos estudos da linguagem a aderir à tese da língua-rio heraclítea.


3) As debilidades da própria gramática tradicional, que a deixaram indefesa ante as investidas da linguística.


4) E — não somos tontos — a possibilidade de ganhos imensos, sobretudo num país em que o estado compra quase toda a produção de livros didáticos e paradidáticos. Imaginem os verdadeiros rios de dinheiro que correram quando o governo federal adquiriu uma multidão, por exemplo, de dicionários atualizados e relançados em razão da reforma ortográfica...


A recente reforma ortográfica, em suma, não é mais que um simples reflexo de um mundo feio, tão feio como a “feiura” sem acento; de um mundo intelectualmente pobre, tão pobre quanto as risíveis contradições e absurdos de que ela se tece (ou se destece); de um mundo “rico”, tão “rico” como a corrente impetuosa da cobiça que arrebenta os últimos diques da inteligência e da ética.**


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* Até o fim deste ano estará publicada uma gramática nossa, onde, a par de normas dadas o mais simplesmente possível e segundo padrões lógico-tradicionais, também poderemos espraiar-nos um pouco mais sobre os assuntos tratados aqui.


** Como se pode ver, escrevemos este artigo, do início ao fim, com a ortografia reformada. Com efeito, também nós fomos levados de roldão pela torrente sem comportas...