sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Sobre as coisas políticas (VIII): momento de ir aos princípios

Sidney Silveira

Alguém me faz a indagação: vamos falar agora sobre a Política em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino? Ou seja: em meio ao caos brasileiro e às vésperas de uma eleição importante? E o texto em que ela veio formulada fazia uma contraposição entre “as possibilidades mais altas do ser humano” e as “possibilidades terrenas”, dando claramente a entender que discutir a Política em suas mais elevadas concepções, quando a vaca está no brejo, é omitir-se das responsabilidades cívicas que o momento — eleitoral — exige. Nas palavras da pessoa que me enviou o email, seria mais ou menos como “ir à lua”, justo na hora do pega-pra-capar.

Ora, não atina o nobre missivista (católico) que fazer política sem saber o que é a Política é uma das principais causas da tragédia contemporânea? Não atina também o nobre missivista que, para tocar um instrumento virtuosamente, é preciso, antes de tudo, conhecê-lo, e, ademais, ter o hábito da ciência musical impregnado na inteligência? Toda vez, portanto, que se discute acerca de qualquer posição política é necessário buscar o princípio reitor da discussão; sem isso, a coisa vira conversa de bêbado... E isto é superiormente válido para o nosso tempo, em que as pessoas perderam a idéia do que seja a Política, pois ou a identificam com o Estado (como famigerada estrutura de poder), ou com os partidos e facções, ou ainda com uma mera instância mediadora dos conflitos entre os indivíduos. Mas qual é a ratio da Cidade, quais são os seus fins e, por conseguinte, os meios adequados para alcançá-los, etc., tudo isso ficou relegado a último plano, ai de nós.

A indagação veio acompanhada de outra idéia deste amigo de fé (pelo visto, um homem imbuído das melhores intenções): a de que a “moral católica”, enfim, deu a pauta da política eleitoral brasileira. Aqui residem várias confusões. Uma delas é a seguinte: diferentemente do que ele supõe, o aborto e o casamento entre homossexuais, temas a que se referia em seu texto, só têm a ver com “moral católica” acidentalmente, ou, como diriam os escolásticos, secundum quid, pois se trata antes de tudo de lei natural. No Irã, por exemplo, estas coisas são proibidas — e não o são por motivos católicos. Tal pensamento nos dá, a propósito, um fiel retrato do catolicismo pós-Vaticano II: a fé se discute nas paróquias e nos seminários (isto no melhor dos casos, é claro); extra muros, o máximo a que se chega é defender a lei natural em alguns dos seus pontos mais evidentes, mas despojando-a de sua fonte sobrenatural, já que se renunciou a pôr a Pólis sob a capa benemerente das verdades da fé.

Clemente de Alexandria, em dado trecho de uma de suas mais conhecidas obras, a coletânea de pensamentos Stromata (I, 2, 19,1), dizia com ironia: “Para supor que a filosofia é inútil, seria útil estabelecer filosoficamente a prova de sua inutilidade". Ora, algo similar se pode dizer da Política*, e justo quando as coisas mais inúteis ou aberrantes têm pleno direito de cidadania (que o diga a recente eleição do Tiririca): em todos os momentos, inclusive na hora eleitoral presente, devemos deixar bastante clara não apenas a utilidade, mas também a absoluta necessidade de buscar apoio em princípios sólidos e irrenunciáveis para cada ação política em que estivermos envolvidos; caso contrário, ficamos sempre à mercê de circunstâncias obscuras e vivemos como reféns da opinião da maioria ou, então, de grupos para os quais todas estas coisas não fazem sentido.

Da mesma forma como o mestre de obras não detém a ciência do fim da edificação, mas apenas executa, no plano material, o que lhe foi passado por engenheiros, e estes por sua vez fazem os cálculos para pôr de pé a idéia do arquiteto que projetou tudo, também na Política ocorre algo similar. Em síntese, somente com o conhecimento preciso de quais sejam os verdadeiros fins da Política se pode chegar a bom termo em qualquer discussão neste tema, e, muito mais que isso, justificar esta ou aquela posição sem cair em argumentos ora sofísticos, ora cegamente apaixonados, ora timidamente covardes.

Quando Sócrates preferiu tomar a cicuta a escapar do cárcere, conforme lhe propuseram os amigos pouco antes de sua execução, disse “sim” ao bem da Cidade e, também, ao das almas — em virtude do nobre exemplo que dera com o seu ato. Num dos mais belos escritos da história da filosofia, o Críton, de Platão, diz Sócrates que fugir do cárcere faria dele um homem indigno. E não se tratava apenas de tornar-se indigno perante as leis, que são a razão de ser da Cidade (pois uma cidade sem leis ou com leis iníquas é a “antipólis” por excelência), mas perante a divindade de onde provêm as leis. Naquele momento, fugir representaria simplesmente matar a verdade, sem a qual não há civilização. Mas, na opinião de Críton, certamente a fuga seria o "mal menor" para Sócrates.

Pois bem: hoje muitos estão matando a verdade para justificar a escolha do mal menor, porque não têm a clara visão do imenso drama do nosso momento histórico. Há, a propósito, um quê de fuga nesta escolha: a fuga da visão de que a “divina” democracia em que vivemos, com o seu ódio à excelência, levou-nos a becos sem saída. O que advirá da atual situação, só Deus sabe.

Ditas todas estas coisas, caro amigo, encerro com as seguintes palavras: se você vê como decisiva a escolha entre o capeta e o capetinha (refiro-me aqui não às pessoas, mas às correntes políticas que representam, em essência anticristãs), boa sorte. Eu, de minha parte, não tenho a mais ínfima esperança de melhora política, sequer a médio prazo. Pelo menos enquanto a Cidade estiver tão hermeticamente fechada à lei eterna — em grande parte por culpa da Igreja, que quis afastar-se decisivamente do Estado —, pois o efeito neste caso é o seguinte: constrangimento da lei natural e conseqüente criação de leis positivas humanas monstruosas.

Esta foi a caixa de Pandora aberta pelo liberalismo forjado nas lojas maçônicas do século XVIII e pelos comunismos que se lhe seguiram (como efeitos às suas causas), a partir de meados do século XIX. Todos ainda muito vivos, neste admirável mundo novo.

* A propósito, uso a maiúscula em Política”para identificar a ciência governo em vista do bem comum. E política com minúscula (ou no plural) ora para indicar tratar-se da simples aplicação de medidas de governo; ora para remeter-nos às ações de alguma facção ou grupo; ora para apontar uma total degeneração da Política que a desvie de seus fins específicos, como é o caso da política partidária em que jazemos — a qual entroniza a demagogia e induz à multiplicação dos conflitos sociais.