quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ateísmo anticivilizacional

Sidney Silveira
Eram mais ditosos os ateus de antanho! Aqueles da época em que a Cristandande cobria o mundo com a sua sombra terrivelmente benévola, que remetia os homens ou à perfeita felicidade ou a suma dor em que consistiam o céu e o inferno — o prêmio e o castigo divinos. Mesmo grandes cristãos, como por exemplo Santo Anselmo, jamais conseguiriam conceber em seu tempo um ateísmo brutal como o que hoje fornece o pano de fundo das sociedades: o ateísmo de homens para quem o simples conceito de Deus e de religião é absurdo, uma superstição social a ser atacada de todas as formas, uma fantasia a ser reprimida com vigor, uma idéia a ser colocada à margem das leis. A propósito, no Proslogion, obra em que compôs o famoso argumento depois chamado de “ontológico” por Kant, Santo Anselmo supunha que a simples menção do nome de “Deus” levava todos, inclusive os ímpios, a pensar no ser acima do qual nada pode ser pensado (nihil maius cogitari potest)*.
O ateísmo, qualquer que seja a sua forma, traz embutida uma conclusão que, na prática, é o cume de um processo racional mal formulado. Não se conhece nenhuma teoria atéia que não possua um grande erro filosófico em suas premissas básicas, em geral fruto de uma atitude prévia de negação. A propósito, o cardeal Louis Billot, referindo-se a ateus adultos, distinguia entre adulti ætatis e adulti rationis: os primeiros são os que carecem de luzes intelectuais mínimas para sair de sua situação e conceber um adequado conceito de Deus, razão pela qual a sua ignorância é quase invencível; os segundos são os propugnadores do ateísmo teórico. Somente estes últimos podem ser considerados propriamente culpáveis, segundo Billot. E o podem porque cegaram a inteligência com erros apaixonados que poderiam muito bem ser evitados.
Cornelio Fabro, por sua vez, afirma em L’Uomo e il rischio di Dio que a pretensão da etnologia materialista e evolucionista de colocar, no princípio da história, um homem sem religião ou um politeísta foi desmentida por vários estudos sérios do último quartel do século XX, que descobriram o seguinte: as formas mais primitivas de religião são monoteístas, sendo o politeísmo um fenômeno degenerativo do monoteísmo originário, e o ateísmo simplesmente inexistente ou, então, uma reação às absurdidades ou inconveniências das práticas politeístas.
Em suma, o ateísmo jamais representa o movimento natural da alma humana na inquirição da natureza das coisas. Daí afirmar Aristóteles no livro que os medievais traduziram por De cælo et mundo (I, 3, 270b): “Os homens têm a profunda convicção de que os deuses existem”. Podemos, a partir daí, trazer à luz outra verdade: “Não existem povos sem religião”.
O ateísmo é na prática uma espécie de válvula de escape, uma fuga que acaba por justificar determinadas maneiras de atuar no mundo. Em suma, para o ateu é psicologicamente confortável pensar que Deus não existe, e a partir desta negação radical não apenas manter-se à margem dos problemas éticos fundamentais e constitutivos da natureza humana, mas também, por conseguinte, dar razões às suas imposturas perante o mundo. Já muito se escreveu sobre a impossibilidade do ateu ético; foi preciso separar a ética da moral, após Kant, para minimizar o funesto antinaturalismo que está na gênese de todo ateísmo e conceber éticas sem nenhuma referência a Deus.
No seio das sociedades sempre houve posturas de alguma maneira atéias, é verdade. Mas nunca foram prevalecentes da forma como hoje o são. Ademais, muitas vezes elas simplesmente confundiam-se com idéias errôneas ou vagas a respeito de Deus, razão pela qual alguns estudiosos católicos — como o próprio Cornelio Fabro, acima citado — qualificaram como formas de ateísmo as filosofias e religiões de fundo naturalista, na Índia antiga: a filosofia samkhaya, o jainismo e o budismo em sua forma originária, ou seja, antes de Buda ser “divinizado”; etc.
Para o grego dos primórdios, a impiedade era punível com a pena capital; para o judeu, representava a estupidez máxima que descambava em idolatria; para o cristão, a desesperança, como diz São Paulo na Epístola aos Efésios. Mas para o homem contemporâneo, forjado no ceticismo e no materialismo anticristãos, a maior impiedade é crer.
Na verdade, mais do que ateísmo, hoje o mundo vive uma espécie de antiteísmo. Deus é o grande fora da lei, razão pela qual as sociedades caminham para a mais retumbante dissolução civilizacional de que se tem notícia.
* Não custa dizer, a propósito, que essa suposição é o erro capital entre as premissas do argumento anselmiano, fato que Santo Tomás aponta dizendo o seguinte: houve pensadores no passado que pensaram ou creram ser Deus matéria ou corpo (crediderint Deum esse corpus). Em suma, não é verdadeiro que, ao pensar em Deus, de imediato o homem conceba-o como o ser acima do qual nada pode ser pensado. É uma pressuposição sem fundamento.