terça-feira, 18 de maio de 2010

A dignidade sacerdotal (I): o sacerdócio de Cristo

Garrigou-Lagrange


Sidney Silveira
Os escândalos morais que hoje abalam a Igreja decorrem, em linha direta, do completo desvirtuamento da doutrina católica nos últimos 50 anos. Esta é a fonte primária de tudo. Ressalve-se que sempre houve homens que voltaram as costas à fé, hereges, cismáticos, loucos, depravados, covardes, etc., mas hoje a corrupção é generalizada e em grau nunca antes imaginado, e ocorre com a total omissão (quando não com o apoio formal) de autoridades eclesiásticas. Os inimigos infiltrados — que haviam sido denunciados no começo do século XX por São Pio X, na Pascendi — ganharam espaço em todos os níveis da Hierarquia, de forma politicamente organizada e valendo-se de sofismas, de filosofias contrárias à fé e, por que não dizer?, de algumas mentiras para convencer os menos esclarecidos e os não-versados nas sublimes sutilezas do Magistério. Há decerto os ignorantes de boa-fé, que servem de massa de manobra, assim como há os ignorantes culpáveis. Mas deixemos de lado, por ora, estas distinções. A elas chegaremos na hora conveniente.

As enormes mudanças — inspiradas sem exceção no modernismo que engendrou o espírito e a letra do Concílio Vaticano II — foram postas em prática de forma tão cirúrgica quanto abrupta, e hoje a Igreja é terra tristemente arrasada; até mesmo o Papa Bento XVI diz que o maior inimigo dela é o pecado que a corrompe internamente, embora não aponte de público em que consiste esse pecado. Mas as evidências apontam ser um pecado muitíssimo maior e mais daninho do que os escândalos morais a que acima fizemos alusão, pois se trata de uma crescente perda da fé no seio do próprio Corpo Místico, uma apostasia assustadora, um câncer no agônico estado terminal da metástase. As palavras de Cristo sobre a Parusia parecem referir-se ao nosso tempo: “Quanto vier o Filho do Homem, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc, XVIII, 8).

Certamente gritos isolados não são capazes de abafar o estrépito da imensa cachoeira modernista, mas cada fiel pode ajudar na medida de suas possibilidades, pois o momento assim o exige. Neste contexto, como a imensa maioria dos seminários modernistas é tomada por carcinomas de alta malignidade no campo teológico-filosófico — criticismo kantiano, fenomenologia husserliana ou mesmo heideggeriana, historicismo hegeliano, etc. —, e aos jovens seminaristas, em geral, não são passados sequer os princípios da doutrina no que concerne ao papel do sacerdote, a dignidade das suas funções e a sobrenaturalidade que as fundamenta, parece-me muito a propósito trazer alguns conceitos, que penso serem úteis para seminaristas de todo o Brasil e, também, para outras pessoas que nos lêem.

Aqui, como nos demais textos do Contra Impugnantes, nada há de propriamente meu. No caso de que se trata, extraio os conceitos do esplendoroso livro De unione sacerdotis cum Christo sacerdote et victima, do Padre Garrigou-Lagrange, que tenho numa velha edição ítalo-espanhola.

Como grande tomista que foi, o Padre Garrigou começa tratando o tema por aquilo que é o mais perfeito e constitutivo: o sacerdócio de Cristo (Sacerdote por excelência!), do qual o sacerdócio dos padres é mera participação. Ambos sacerdócios manifestam a misericórdia de Deus para com os homens que vão salvar-se. Prestem atenção: dos que vão salvar-se! Essa sutileza do teólogo francês é conseqüência direta de uma verdade de fé baseada na Escritura e no Magistério, a qual afirma categoricamente: nem todos se salvarão, pois há os que irão para o fogo inconsumível da Geena.

O sacerdócio de Cristo Salvador
É de fé que o sacerdócio de Cristo é eterno. Diz São Paulo: “Temos um grande pontífice que penetrou nos Céus, Jesus, o Filho de Deus” (Hb. IV, 14). “É sacerdote para sempre” (Hb. VII, 3). A mesma coisa ensinam os Concílios de Éfeso e de Trento, além de tantas outras passagens da Sacra Pagina.

Primeiramente, vale dizer que Cristo é sacerdote como homem, dado que o ofício próprio do sacerdote é ser mediador entre Deus e os homens. Tal mediação — própria de todo sacerdócio e não apenas do de Cristo — se dá num duplo sentido:

> Mediação descendente, que consiste em dar a doutrina pelos ensinamento e a graça pelos sacramentos. Ora, Cristo não apenas deu a doutrina como também instituiu os sacramentos;
> Mediação ascendente, que consiste em oferecer a Deus as orações e o sacrifício da Missa (com o povo e pelo povo). Ora, Cristo não apenas oferece-se na Missa, mas a sua oferta foi muito além, como veremos.

Assim, estas duas funções competem de modo singular a Cristo enquanto homem, porquanto a sua humanidade — situada em ordem inferior à sua natureza divina — está unida pessoal e hipostaticamente ao Verbo. Ademais, recebe Cristo como cabeça da Igreja a plenitude da graça. Daí que Santo Tomás, a certa altura da Suma, perguntando-se se convinha a Cristo ser sacerdote, cita as palavras de S. Pedro: “Ele nos fez mercê de preciosas e ricas promessas para fazer-nos assim partícipes da natureza divina” (II, Petr., I, 4).

É, portanto, Cristo sacerdote e mediador como homem, sendo (neste aspecto específico) inferior a Deus. Mas não é demais mencionar que, mesmo como homem, é Nosso Senhor superior aos anjos em razão da união hipostática e conseqüente plenitude de graça e glória. União essa que é o constitutivo formal próprio do seu divino sacerdócio.

Tendo isto em vista, afirma o Aquinate que o sacerdócio de Cristo-homem é eterno num triplo sentido: a) pela imperecível união hipostática; b) porque não teve sucessor; e c) pela consumação perfeitíssima do seu sacrifício, ou seja: a perpétua união dos homens redimidos com Deus visto face a face.

Este é propriamente o fruto eterno do sacrifício do Salvador: a vida eterna. Por isso diz a Epístola aos Hebreus que Cristo “foi constituído Pontífice dos bens futuros”, como nos lembra o Padre Garrigou.

Enfim, Cristo é, além de Sacerdote, Hóstia. Isto porque ele próprio se ofereceu inteiramente a Deus-Pai, sofrendo a morte de Cruz. E isto é de fé: “Entregou-se por nós em oblação e sacrifício a Deus em olor suave” (Ef. V, 2). O Concílio de Trento diz o mesmo: “Ofereceu-se a Si mesmo ao Pai na Cruz, sofrendo a morte para alcançar-nos a redenção eterna” (Dz. 940).

Dizem vários teólogos importantes que Cristo é Hóstia num triplo sentido: Hóstia pelos nossos pecados, ou seja, para a remissão deles; Hóstia pacífica para a conservação da graça; Hóstia de holocausto, para unir as almas perfeitamente a Deus, na glória.

Ademais, tão perfeito é o sacrifício de Cristo que a sua morte, além de tudo, supera infinitamente a morte dos Santos mártires. Mas em quê? Apesar de a morte dos mártires ser voluntária e causada por feridas mortais que se lhes impingiram, eles não tinham o poder ou a liberdade de reter a vida; Cristo, ao contrário, se quisesse poderia não morrer, mesmo sendo as suas feridas mortais. Portanto, o seu sacrifício não foi apenas perfeito, mas perfeitíssimo!

“Ninguém me tira a vida; sou eu que a dou de Mim mesmo” (Jo., X, 18).

E há ainda mais: Cristo ofereceu-se como Vítima primeiro na Última Ceia, incruentamente sob as espécies do Pão e do Vinho; depois cruentamente na Cruz, com seu próprio Corpo e Sangue. E muito a propósito diz Garrigou o seguinte: ainda que Cristo não tivesse celebrado a Ceia, sua morte voluntária seria um verdadeiro e perfeito sacrifício, suficiente para a instituição formal da Eucaristia. Isto porque na Cruz não há só imolação cruenta, mas oblação interna e externa, sendo esta última manifestada pelas palavras: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”; e “tudo está consumado”.

A dignidade do sacerdócio dos padres, como se vê, é divina, na medida em que é uma participação no sacerdócio perfeito de Cristo, Sacerdote e Vítima. A ele os padres estão unidos de forma muito especial, como se verá nos textos desta série.

Ah, se a maioria dos seminários contaminados pelo modernismo, em vez de ficar ensinando bobagens e heresias (como por exemplo as de Urs von Balthasar e outros), desse ênfase ao cerne da doutrina católica, quantos padres Santos ainda se produziriam! Quantos padres preocupados em, acima de tudo, salvar as almas! Ah, quantos seriam um grande exemplo se não tivesse sido inoculado em suas almas o mais terrível naturalismo que se fecha ao influxo da graça!...

(continua)