sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O mistério da história (I)

Carlos Nougué
“Cremos que uma das vindas [de Cristo] mais inauditas, e mais consoladoras, será a conversão do povo de que Ele procedeu segundo a carne, o povo judeu [...]. Nós somos advertidos pela Escritura de que o Senhor o reconduzirá. Ignoramos as modalidades desta reintegração [...]. O que importa é apressar pela nossa prece a conversão de Israel, o povo de que o Filho de Deus se originou segundo a carne, o povo da Virgem Imaculada e dos doze Apóstolos. Que o Senhor, em cada Missa, digne-se lembrar do nosso pai Abraão, que Lhe ofereceu como figura o sacrifício que nós oferecemos realmente; e que Ele reconduza a Si a descendência carnal do primeiro patriarca. Supra quæ propitio ac sereno vultu respicere digneris...

Vinde, Senhor Jesus. E temos certeza de que vireis. Seja resplandecente a vossa visita ou permaneça oculta no seio da noite — vireis infalivelmente. Nunca rejeitais a prece de vossa Esposa; nunca lhe frustrais a espera. — Quando não concedeis exatamente o que pedimos, concedeis o que preferiríamos se já tivéssemos sido admitidos na contemplação face a face de Vós. O Senhor está perto de todos os que O invocam, de todos os que O invocam com sinceridade (Salmo 144).

Vinde, Senhor Jesus. — Sim, venho depressa” (R.-Th. Calmel O.P., Théologie de l’histoire, pp. 109-110).

Que é, teologicamente, um mistério? Antes de tudo, não confundamos este tipo de mistério com enigma. Enigma pode ser, correntemente: uma questão proposta em termos obscuros, ambíguos, para ser interpretada ou adivinhada por alguém; qualquer enunciado ambíguo ou velado; coisa inexplicável, aquilo que não se pode compreender. Mistério, por seu turno, nos termos que nos interessam aqui, é o objeto — objeto de fé, dado pela Revelação — que possuímos, sim, intelectualmente, embora nunca lhe possamos esgotar o conhecimento: é multifacetado ao infinito. Suas faces são como as páginas do livro de areia que inventou, em sua ficção, o agnóstico escritor argentino Jorge Luis Borges, as quais, quanto mais se viram, mais se multiplicam. O mistério, todavia, nós, os católicos, o queremos possuir e possuir pela fé, ao contrário do que sucede com o personagem borgiano: não suportando a visão de tal livro, acaba por livrar-se dele. A fé, que nos é infundida por Deus mesmo, e que tem por sede ou vaso a razão, é-nos dada justamente para nos possibilitar aquele querer e aquela efetiva posse.

Também a história é, de muitos modos, um mistério, igualmente multifacetado. E a face mais superficial deste mistério é talvez o fato de que todos os intentos dos diversos povos invariavelmente malogram, quando muito, no instante mesmo em que estes parecem mais seguros de suas rédeas. Trata-se de uma evidência, e nem a necessitaríamos exemplificar com os casos sem fim de civilizações e povos pagãos cujo ápice foi a sua própria ruína. O Império de Alexandre? O Império Romano? O Império britânico? Basta-nos o caso mais decisivo, e tão diretamente concernente a nós, os católicos: a Civilização Cristã, cujos alicerces começam a fender no momento mesmo (século XIII) em que ela atinge o zênite com as esguias torres de suas catedrais e do tomismo.

Pois bem, falar nesta face mais superficial do mistério da história é falar, já, em outra, muito mais profunda e tenebrosa: “O mistério da iniqüidade está em ação desde o presente”, escrevia São Paulo aos Tessalonicenses já no momento mesmo em que surgia a Igreja fundada por Cristo. Ora, falar no mistério do mal é tocar imediatamente o mistério da permissão do mal pelo Altíssimo, o Qual, no entanto, é a própria Bondade, razão por que, se o permite, é necessariamente por um bem infinitamente superior.

Além do mais, o Verbo — o Filho unigênito de Deus — se fez carne e habitou entre nós, e eis-nos perante uma face capital do mistério da história: o termos entrado na plenitude dos tempos precisamente quando começava o tempo “maior” da Redenção (vide Gálatas IV e Efésios I, 10). “O Pai amou tanto o mundo, que chegou a lhe dar o seu próprio Filho único e com Ele todos os bens [...]”, escreve o Padre Calmel; “por outro lado, a Igreja sempre santa fundou-se para sempre, com os seus poderes hierárquicos definidos e indestrutíveis, para nos fazer participar dos tesouros inefáveis de sabedoria e de graça que estão ocultos no coração do Senhor Jesus” (ibid., pp. 9-10). E, se saber esta verdade misteriosa, ou seja, que estamos desde Cristo na plenitude dos tempos, impede a adesão às teses modernistas segundo as quais a Igreja há de ser ultrapassada por uma “Supra-igreja”,* sabê-la é também, por outro lado, ferir de morte todo e qualquer milenarismo, como veremos no próximo artigo.

* “São Paulo sem dúvida libertou do Judaísmo a Igreja nascente, mas o fez para permitir à Igreja afirmar-se tal qual é: Igreja de Jesus e da nova lei, não igreja da lei mosaica, que terminou para sempre desde o dia da Páscoa e de Pentecostes. Seria pois uma sinistra facécia reclamar-se por exemplo de São Paulo para pretender libertar a Igreja de não sei que sobrevivências arcaicas, quando se sabe que estas sobrevivências não são senão as estruturas da Igreja queridas pelo Senhor: doutrinas definidas e sacramentos determinados. Tal facécia sinistra [pretende livrar] a Igreja do peso de vinte séculos de tradições, e [ultrapassar] vinte Concílios dogmáticos. [...] Ultrapassagem que é um embuste” (R.-Th. Calmel O.P., op. cit., p. 10).