terça-feira, 17 de novembro de 2009

As relações entre a inteligência e a vontade (II)

Sidney Silveira
A vontade é livre para querer ou não querer, e essa liberdade é exercida a partir de um juízo prático pelo qual o homem se torna capaz de escolher determinadas coisas em detrimento das outras. A eleição de um bem pela vontade implica a indiferença em relação a outros bens que a ela se apresentavam. Em resumo, na concepção de Santo Tomás os bens particulares (bona particularia) não determinam a vontade necessariamente, e essa radical indeterminação manifesta a indifferentia objectiva da vontade, enquanto o ato de escolha, em si, manifesta a sua indifferentia subjectiva. Mas frise-se bem: essa “liberdade de indiferença” se dá tão-somente em relação aos bens particulares, mas não em relação ao bem sumo, que é Deus — por isso os bem-aventurados no Céu não podem não querê-Lo, não podem não amá-Lo, pois aderem a algo irresistivelmente poderoso e apetecível.

A liberdade de eleição — conhecida por nós como livre-arbítrio — é a faculdade conjunta da inteligência e da vontade — como diz o Aquinate numa famosa passagem (libero arbitrium dicitur esse facultas voluntatis et rationis)*. Essa simples frase, além de mostrar o quão equidistante está Santo Tomás tanto do intelectualismo como do voluntarismo, revela uma verdade fundamental da antropologia tomista, a saber: não há nenhum ato propriamente humano que não proceda da inteligência e da vontade, do entendimento e da volição. Os atos involuntários, embora possam ser praticados por um homem, não são próprios do homem, pois outros animais também os realizam. Portanto, atualizada por nossas duas potências máximas, a liberdade é algo que distingue radicalmente o homem. Somos naturalmente livres, e o somos graças ao influxo benfazejo da inteligência e da vontade — um influxo harmonioso desses dois co-princípios superiores, com prevalência radical (simpliciter) da inteligência, que, como dissemos no artigo anterior, fornece à vontade o seu objeto próprio.

Mas será essa liberdade humana absoluta? Uma simples aproximação ao problema pode conduzir-nos a evidências que serão muito úteis na perseguição da resposta. Para o voluntarismo medieval, encarnado com particular ênfase em Duns Scot, a vontade é autodeterminante (autodeterminans) e, em sua íntima essência, livre (potentia libera per essentiam)**. Ora, como diz o já mencionado G. Manser, a quem seguimos de perto nesta série de textos, Duns Scot atribui essa autonomia absoluta da vontade não apenas a Deus, mas também ao homem, e isto num duplo sentido:

a) A vontade humana é livre com relação a qualquer objeto. Nenhum bem, nem o bonum in communi aqui na terra, nem Deus como objeto da bem-aventurança eterna, no além, é capaz de mover a vontade necessariamente. Todo ato da vontade, assim na terra como no Céu, é absolutamente livre (voluntas respectu cuiuslibet actus est libera et a nullo objecto necessitatur***). Um dos gravíssimos problemas teológicos e heresias a que conduz essa premissa, se a levarmos às últimas conseqüências, é que a alma de Cristo pode pecar, assim como a dos bem-aventurados****. Ela também nos leva a concluir que o demônio seria “livre” para querer o bem em comum e, por conseguinte, desejar o bem das almas humanas. A esta questão voltaremos noutra oportunidade.
b) Com relação ao entendimento, Scot também manteve o principal da premissa voluntarista. Em sua opinião, decerto a inteligência apresenta à vontade diversos bens, e, neste sentido estrito, o frade franciscano considera-a uma conditio da ação livre — embora apenas como causa per accidens, não necessária. Em suma, como o conhecimento apresenta diversos bens como indiferentes, ele não exerce nenhum influxo causal necessário sobre a vontade. Esta última seria, na visão scotista, a única causa próxima do ato livre. Aqui, um dos problemas da opinião de Scot é considerar todos os bens como indiferentes, independentemente de sua excelência ontológica; e, entre as várias conseqüências dessa tese, está a de o mundo e todas as coisas que há nele perderem fundamentalmente a sua ratio, pois tudo passa a depender in primis da vontade. Assim, as nossas escolhas passarão a ser a resultante de um impulso cego da vontade, e, no tocante a Deus, todas as coisas criadas só serão conhecidas pelo espírito divino porque dependem da Sua soberana vontade. A lei, neste cenário, jamais poderá ser a ordenação da reta razão ao bem comum, mas algo cujo fundamento último está na vontade divina. Não à-toa, para Duns Scot todos os sete últimos mandamentos do Decálogo são, em si mesmos, dispensáveis, pois só são bons na medida em que Deus, arbitrariamente, assim o quis. Honrar pai e mãe, não furtar, não dar falso testemunho, não cobiçar a mulher do próximo, etc., não são bens em si mesmos. Incrível!

Tanto o intelectualismo como o voluntarismo falsificam a idéia do que seja, efetivamente, o ente humano, porque acentuam de forma unilateral uma de suas duas principais faculdades, em detrimento da outra. No caso de que nos ocupamos, o erro voluntarista abarca a noção de lei, a de moral, a de religião e até mesmo as bases da metafísica. Tal erro perpassa a história da filosofia a partir de século XIV, de forma extraordinária.
(continua)
* Santo Tomás. Suma Teológica, I, q. 83, a. 3-4
** Duns Scot. Opus Oxon., I, d. 1, q.4.
*** Duns Scot. Opus Oxon., IV, d. 49, q.10.
**** “Por ser a bem-aventurança a posse do bem perfeito e suficiente, é necessário que aquiete o desejo do homem e exclua todo o mal (...). A bem-aventurança perfeita do homem consiste na visão da essência divina. Mas é impossível que quem vê a essência divina queira não vê-la. Porque alguém deseja privar-se de um bem que já tem ou quando é insuficiente, e busca pôr outro mais perfeito em seu lugar, ou quando [esse bem] está associado a algum incômodo que provoca fastio. Pois bem: a visão da essência divina preenche a alma de todos os bens, pois a une à fonte de toda bondade”. Santo Tomás. Suma Teológica, IªIIª, q. 5, art. 4. Resp.