Barrabás (Gustave Doré)
Sidney
Silveira
Ao amigo Carlos Nougué
Universi, qui te exspectant,
non confundentur, Domine.
Salmo
XXIV
Quando Pôncio Pilatos volta-se à furiosa turba de
judeus e pergunta quem ela quer que seja solto, Cristo ou Barrabás, está
falando a homens de todos os tempos. Por trás da indagação do præfectus romano da Judéia se oculta um profundo
dilema: cimentar a base social em ardilosos estratagemas humanos ou erigi-la
sobre a pedra angular das leis divinas, fonte inalienável dos poderes terrenos,
conforme assinala o próprio Cristo quando diz ao vacilante algoz à Sua frente que
não teria nenhum poder de libertá-Lo ou de condená-Lo, se não lhe tivesse sido
dado do alto. A escolha ali simbolizada é
entre construir a Pólis depositando total confiança em homens facciosos —
hoje o eufemismo social vigente os considera “democratas” integrantes de partidos
políticos — ou na sabedoria eterna. Entre
tomar como modelo das ações humanas, e portanto da política, o verdadeiro
Messias ou os falsos.
Ora, toda
sociedade decadente descamba para o messianismo político. Não há exceções
históricas. Por esta razão, no caso de Cristo — situado entre uma Roma imperial corrompida, já afastada dos elevados princípios republicanos que a erigiram, e o elitizado e pretensioso judaísmo farisaico
—, a escolha não poderia recair senão sobre Barrabás, o revolucionário zelote.[1] Cristo já o sabia por presciência divina, como também tinha a pleníssima noção
de que, com o Seu sacrifício, traria ao mundo a possibilidade de
reestruturar-se noutros paradigmas: a caridade, e não a cupidez, passaria a
servir de fermento para o corpo social, dos estratos mais humildes e desvalidos
aos governantes. O caminho foi longo até a Cristandade gerar as autoridades públicas
mais sábias e prudentes de que se tem notícia. Mas ela, de acordo com os
desígnios da Providência, também estava marcada para decair, e a queda foi lentamente
agônica.
Nenhuma sociedade
se desfaz sem perder substância espiritual — e o primeiro grande degrau nesta
direção é o farisaísmo religioso, a um só tempo formalista e confiante no seu
próprio saber. Tal atitude em geral consagra a letra e mata o espírito do qual
ela é apenas símbolo; assim, a religião corrompe-se paulatinamente e os estudiosos
das coisas divinas começam a sofisticar o discurso a ponto de se sentirem hermeneutas
privilegiados das Sagradas Escrituras, embora sem haver recebido nenhum carisma
para tanto. Incapazes de humildemente conservar a tradição recebida, reformam-na
fazendo uso de palavras e conceitos de sua própria lavra, e após a sofisticação
vem sempre a degradação. Em síntese, toda
e qualquer civilização começa a ser destruída por maus teólogos, ou seja,
por estudiosos novidadeiros das coisas divinas, e com a cristã não poderia ser
diferente. A propósito, ponha-se na conta de dois frades franciscanos o lançamento
das longínquas sementes do caos espiritual que se espraiou para o terreno da
política e, séculos depois, acabou por gerar a modernidade: Duns
Scot e Guilherme de Ockham.
Para se ter idéia, na opinião do Doutor Sutil o
homicídio, a traição e a mentira não são coisas intrinsecamente más; elas são
más tão-somente porque Deus as proibiu — e o fez por Sua libérrima vontade.
Para Scot, no horizonte da moral a vontade divina é a única e exclusivíssima
fonte do bem e do mal,[2] e, por esta razão, segundo o seu tresloucado parecer, apenas os dois primeiros
mandamentos das Tábuas da Lei entregues a Moiséis no Sinai — referentes a Deus
— são indispensáveis e universais. Todos os demais são bons apenas porque Deus
quis que fossem, mas poderiam ser maus se Ele assim decidisse. Em Scot não
existe nenhuma lei necessária na natureza, nem mesmo uma lei eterna da qual
provenha, mas só a vontade divina a pairar como que tiranicamente acima de tudo;
Ockham repetirá estes princípios voluntaristas e os aprimorará em várias
passagens de sua obra. Na perspectiva deste famoso autor insubmisso ao Papado, nada
pode ser propriamente inteligível na criação, já que as coisas não se predicam
umas das outras, mas apenas predicam-se convencionalmente os conceitos.[3]
Entre os entes de razão e a realidade das coisas
criara-se um pântano impossível de atravessar. Ora, não demoraria muito para a
política ser inoculada por esta disteleologia irracionalista que foi tomando as
universidades e fazendo as cabeças, geradora de um novo tipo de farisaísmo teológico insubordinado à tradição apostólica e
ao Magistério da Igreja. A partir deste período, com o hiato estabelecido
entre as coisas temporais e as espirituais, primeiramente sobrevirão as revoluções
luterana e calvinista, com as suas inumeráveis guerras sangrentas; mais tarde
virão as revoluções francesa (liberal-maçônica) e russa (comunista). O mundo
escolhera definitivamente a Barrabás, malgrado as reações magisteriais da
Igreja; estas porém se foram tornando impotentes perante o novo vetor materialista,
libertário e humanista da história.
Os messianismos políticos multiplicam-se na exata
medida em que inexistem autoridades espirituais que, de forma solene, custodiem
as verdades eternas. A sagração da consciência
individual dos homens como instância intocável é concomitante à dessacralização
de todas as coisas, e, neste contexto, a débâcle do Magistério da Igreja a
partir do Concílio Vaticano II é o acontecimento culminante do século XX, mais
que as duas Grandes Guerras, pois representa o odiento fechar de olhos para as
coisas políticas tomadas de assalto pelo que há de pior no gênero humano. Falseado
e deturpado, o conceito de “dignidade da pessoa humana” se transforma em motor da política pós-moderna ocidental, e de
todos os lados é mencionado para justificar os pleitos mais absurdos.
Hoje alguns querem fazer-nos imaginar que
estamos perante uma escolha de Sofia: ou o projeto eurasiano russo, em parceria
com cismáticos ortodoxos, ou os neocomunismos imperantes sobretudo na América
Latina, ou o avanço europeu do Islã, religião a respeito da qual o abade Pedro,
o Venerável, escrevera no distante século XII o estupendo Liber contra sectam sive haeresim sarracenorum. Como pano de fundo
de todas essas possibilidades, encontram-se as premissas liberais dos que odeiam a
Igreja e a querem ver afastada da instância política a todo custo, pois do
contrário o reinado material do Anticristo nunca seria possível.
Em tal configuração, convém ter em vista o
seguinte: todos os que põem a confiança no Senhor não serão confundidos, como
afirma o Salmo que serve de epigrafe a este breve texto. Portanto, é melhor a derrota política com a cruz espiritual às costas do que a vitória política infamante.
Tal confiança verdadeiramente heróica pressupõe
que os católicos não abandonem a Igreja, mesmo com a sua Hierarquia fazendo de
tudo para os melhores apostatarem, e também não adiram a nenhum desses messianismos
políticos, pois se trata de tentáculos do mesmo demônio.
Seja à esquerda ou à direita da depravação.
1- Para
exemplificar isto, vale frisar que Cristo
— diante de Pilatos e dos judeus que O acusavam de blasfêmia — está literalmente
entre a omissão culpável do poder político corrupto e a maldade espiritual da
mais pérfida das elites, sendo esta última sumamente deletéria, pois se volta contra o bem maior. “Quem Me entregou a ti tem maior pecado” (Jo. XIX,
11).