Vimos um camelo a dançar.
(Camelum vidimus saltitantem.)
São Jerônimo
Contra Helvídio, XVIII, 226
Sidney Silveira
O liberal militante, em seu vertiginoso afã de liberdade, é como um louco que, valendo-se dos argumentos da mímica circense, pretendesse convencer ao seu psiquiatra de que os cachorros são livres para miar, e os gatos para latir. O fato de que isto jamais se dê na realidade é mero detalhe; um tanto incômodo, decerto, porém sem maior relevância perante a omnímoda liberdade de consciência que o liberal crê existir, a qual o induz a discorrer sobre várias idéias sem jamais remontar aos fundamentos das premissas implicadas.
A comparação acima nos serve para apontar o fato de que o liberalismo, em qualquer de suas correntes — e estamos falando de uma hidra multicéfala — não é propriamente uma teoria, mas o espírito engendrador de mil teorias. Um espírito de negação dos princípios da ordem do ser, que, apelando a uma maliciosa profilaxia, fecha culpavelmente os olhos para o arcabouço metafísico que impugnaria as suas teses religiosas e políticas, assim como parte das econômicas.
É, portanto, a coisa mais comum do mundo ver um liberal fugir às definições essenciais como o diabo foge da cruz. Tanto a precisão conceptual como o raciocinar a partir de princípios universais parecem atentar fragorosamente contra a sua liberdade de consciência. E não se atreva ninguém a insultar um liberal pedindo-lhe que defina — com rigor mínimo — os termos “liberdade” e “consciência”: em alguns casos, ele se defenderá dizendo que não se trata de filosofia, sem perceber que com isto invalida in nuce as próprias teorias; noutros, manterá a opinião mesmo diante das mais avassaladoras objeções. Seja como for, incomoda-o letalmente o fato de que, para pensar com retidão e organicidade, é preciso vencer o problema básico da relação entre nomes, conceitos e coisas. Superar os termos equívocos.
A Torre de Babel é o seu altar-mor, epítome da natureza humana que pretende chegar a Deus orgulhosamente por esforços próprios, sem o auxílio luxuoso da Graça. E por isso se perde na multiplicidade, no caos, numa espécie de dissenso plurânime que, invertendo a ordem dos bens, pretende fazer da liberdade uma meta política, sem imaginar que, como diz o tomista Jorge Martínez Barrera no livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, “a liberdade não pode ser o fim de uma comunidade política moralmente aperfeiçoadora porque tal comunidade só existe quando as ações que a conformam são atos, e não potências”, e a liberdade, no vocabulário técnico da filosofia, é um conceito afim ao de potência: é liberdade de algo e para algo. A liberdade está para a paz social, que é o bem das comunidades humanas, assim um instrumento está para o fim a que se destina.
Eximindo-se, pois, de explicar amiúde termos centrais que servem de pano de fundo para as suas teorias, o liberal militante sente-se livre como um cavalinho de carrossel a saltar sobre quimeras. Neste sentido, o liberalismo (repitamos: em qualquer de suas inúmeras correntes!) é uma peculiar forma mentis cuja loquacidade é proporcional à ambivalência — ou mutivalência — de que se vale. Em tão sombrio contexto, cumpre-nos dizer que a supremacia desse espírito de negação dos princípios que é o liberalismo só foi possível graças ao colapso, no terreno ético-político, da noção cristã de Summum Bonum, como apontou José Guilherme Merquior no livro O Argumento Liberal. Apenas esqueceu-se de dizer Merquior que tal colapso só se consolidou a partir do paleoliberalismo do final do século XVIII e começos do XIX. Em breves palavras: o liberalismo é concausa da perda da noção cristã de Sumo Bem no plano político, e não a sua conseqüência.
Se aristotelicamente explicamos a um liberal que a liberdade (a verdadeira, que radica na vontade e se materializa nas escolhas, e não tem como fonte a consciência individual) acontece apenas em relação aos meios, pois os fins já nos estão dados, ele trinca os dentes. Reiteremos isto com outros termos, a título de procedimento mnemônico: em toda e qualquer natureza, não há liberdade com relação aos fins, e quando estes não se cumprem significa que a natureza se desnaturou: é o caso da figueira estéril do Evangelho, de um olho que não vê, de um pé que não anda, de um homem que habitualmente não diz a verdade. Trata-se de naturezas malogradas, ou seja, que apresentaram defeito nalguma das propriedades emanadas de sua essência.
Os limites da liberdade estão circunscritos, pois, pela forma entitativa, que é princípio de operação. Voltar-se contra as potências inscritas na própria forma é a “prerrogativa” do ente humano à qual o cristianismo chamou de pecado. Em nenhum outro ente natural composto de matéria e forma é possível agir contrariamente à sua própria natureza; no máximo, esta se degrada pelo princípio de corruptibilidade material, que pode chegar ao ponto de destruir a forma, caso por exemplo da morte. O homem é o único ente capaz de degradar a própria forma antes de corromper-se a matéria. Podemos por aí dimensionar que o pecado é uma derrota metafísica, e nela se corrompe a vontade, potência onde reside a liberdade. É claro que o liberal, homem pragmático, não está preocupado com tais sutilezas de ordem teorética. Deixemo-lo contemplar cágados voadores e saborear um pouco mais o fruto proibido.
Conceito afim ao de potência, e não ao de ato, como acima dissemos, a liberdade manifesta-se na escolha amorosa e ordenada do bem. Ou, noutra formulação: o bem — no plano metafísico, assim como no político — é o fim da liberdade, sendo o amor o ato livre da vontade na escolha efetiva do bem. Em suma, o amor é o ato livre por excelência, desprovido de amarras de quaisquer naturezas; porém se trata de um ato sui generis, que, se se realiza fora do fim ao qual tende a potência que o possibilita, a derroga e se anula. O problema do liberal militante é que, em geral, está incapacitado para compreender que não há genuína liberdade sem amor (mesmo mantendo-se a faculdade de escolha, pois liberdade é mais que livre-arbítrio, como veremos), e o amor pressupõe o bem e a verdade. Comunidades de satanistas ou de nazistas, por exemplo, só podem dizer-se “livres” por uma torta analogia, pois são fundadas no erro e no desamor, que matam a liberdade e escravizam o homem.
Em resumidas contas, a liberdade é potência para a felicidade, e só se pode realizar plenamente no ato que a especifica: a posse do bem na deliberação devida da ordem de bens que há na realidade. E a ordem, no plano natural, tem a pessoa humana no ápice; e, no plano sobrenatural — que é a sua razão de ser, pois o natural ordena-se ao sobrenatural como a seu fim próprio —, tem como fim a Deus, criador e mantenedor de todos os bens, fonte perene da felicidade. A propósito, o pecado de Lúcifer, segundo Santo Tomás, foi não deliberar, ao amar-se de maneira desordenada, a respeito do bem sumamente perfeito e amável, que é Deus, e com isto subtraiu-se à ordem e se danou. Tendo sido criado livre, Lúcifer perdeu formalmente a liberdade que Deus lhe outorgara para ser feliz, restando-lhe um arremedo de livre-arbítrio que não lhe permite sequer sair do ódio e da maldade em que jaz. Dotado de poderosíssima inteligência, anuiu ao mal com plena ciência, sofrendo como pena, ipso facto, a perda da liberdade, em seu real sentido metafísico.[1]
Reiteremos o seguinte: não existe liberdade fora do amor (êxtase da potência volitiva) e da verdade (êxtase da potência intelectiva). E frise-se que não tomamos liberdade e livre-arbítrio como conceitos unívocos, pois, como dizia Santo Agostinho, livre-arbítrio é a faculdade de escolha entre isto ou aquilo, entre o bem ou o mal, etc., ao passo que a liberdade — repitamos, agora com o Doutor da Graça — só se pode lograr na escolha consciente e amorosa do bem. Para ficar ainda mais clara a formulação: não somos livres porque escolhemos, mas escolhemos porque somos livres, pois a liberdade é, ontologicamente, anterior às escolhas pelas quais se manifesta; é o horizonte possibilitante delas.
Como a liberdade implica o uso da inteligência, a qual nos faculta mensurar as escolhas a partir da apreciação dos dados, chegamos a outra definição: liberdade é potência para o bem apreendido retamente pela inteligência. Radica na vontade, que tem sobre a inteligência superioridade acidental no operar, pois a vontade move todas as demais potências no ato de escolha, mas inferioridade essencial quanto ao ser, pois a vontade nada seria sem a inteligência. A absurdidade de qualquer posição voluntarista está em que não leva em conta um fator decisivo: a moção primordial da inteligência sobre a vontade se dá com relação à forma intelectiva do bem, e não quanto a este ou àquele bem particular, o qual sequer poderia ser apetecido pela vontade se a inteligência não lhe tivesse subministrado o conceito de bem.
Sem compreender estes e outros princípios, o liberal pode eventualmente transformar-se num economista competente em apresentar fórmulas para aumentar a reprodutibilidade dos bens materiais no seio das sociedades, como foi o caso de Mises. Mas ocorre o seguinte: faltam-lhe critérios objetivos de moralidade, razão pela qual sucumbe, na melhor das hipóteses, ao formalismo das morais categóricas e utilitaristas. Ademais, o mercado é o idolatrado bezerro de ouro do liberal; além dele, da consciência e da liberdade, quase tudo é subjetivo e está no plano individual. É como se o indivíduo fosse, ao modo de Protágoras, a medida de todas as coisas. Infelizmente, o liberalismo não consegue superar as aporias das brumosas definições de “consciência” e “liberdade” que vai perpetrando, em suas incontáveis correntes. Se porventura o liberal ouve que, para Santo Tomás, o limite da propriedade é o bem comum, desmaia de indignação.
Estas são razões por que o liberal habitualmente tenta apagar as pegadas de sua inconsistência basilar, nas perspectivas moral e gnosiológica. Trata-se de um prestidigitador que procura convencer as pessoas de que, para as suas teorias ficarem de pé, não é preciso apelar a princípios metafísicos. Isto ocorre sobretudo quando o liberal é repetidor das teses de seus mestres; neste caso, ele pula sobre os tamancos quando, por exemplo, lhe mostramos que a praxeologia de Mises padece de uma confusão entre eudaimonismo e hedonismo, e mais, que os atos propriamente humanos não podem ter como base a fuga do desconforto, como pensava o economista austríaco. Mas quando este pontifica, na Ação Humana, que a teologia cristã “condenou as funções animais do corpo humano e definiu a alma como algo externo aos fatores biológicos”, digamos, sem matizações, que está perpetrando uma calúnia...
Vale registrar o seguinte: por trás da imensa maioria dos liberalismos — sejam políticos, econômicos ou cristãos — vemos a sombra da moral de John Locke, cujos esforços mais persistentes, como lembra o meu querido amigo tomista Luiz Astorga, centraram-se na tentativa de inverter o conceito clássico de natureza, atomizá-lo, individualizá-lo. A moral lockeana é aquela em que o conteúdo inteligível da lei natural se transforma num vácuo hediondo. Daí que o laicismo, apelidado pelo católico liberal de sã laicidade, e o ecumenismo, na forma do indiferentismo religioso, sejam pressupostos da Carta sobre a Tolerância de Locke grandemente assimilados pelos liberais; pressupostos estes de um mundo em que a lei natural, como espelho da lei eterna, não existe. É absurda.
Ora, sem a noção correta de lei natural a queda no utilitarismo é automática, e pior: num utilitarismo materialista, embora de maneira disfarçada na obra dos liberais mais competentes. Seja como for, não existem propriamente direitos naturais para um liberal de boa cepa, e quando este eventualmente defende a existência da lei natural é com tantos conceitos equívocos que, em verdade, parece falar de outra coisa. Na verdade, o utilitarismo de Locke — que chegara ao ponto de considerar o direito de herança como o laço que une as famílias! — foi passado a seus descendentes liberais com variantes mais ou menos aporéticas.
Tais idéias fizeram escola no liberalismo, que se deblatera contra o Estado mas no fundo não consegue transcendê-lo, malgrado o considere útil na medida em que proteja a propriedade e garanta o atendimento às demandas do mercado. O seu mantra monocórdico é: quanto maior a intervenção estatal, menor a capacidade de prover os bens de que a sociedade precisa. Ocorre que, se a premissa valesse apenas para o âmbito econômico, poderíamos aceitá-la — com as devidas exceções exigidas pelos fundamentos metafísicos da ordem moral —, mas ela é por osmose transpassada ao terreno político, razão pela qual o liberal tende a considerar qualquer intervenção do Estado, mesmo em questões não-monetárias, como ações indevidas e “estatizantes”.
O pior de tudo reservamos para o final: o liberal católico. Após morder com vontade o fruto proibido da falsa liberdade, o pânico deste com relação à história da Igreja tornou-se indisfarçável. A Inquisição, as Cruzadas, os dogmas imutáveis, o Index, a posição dos principais teólogos da Igreja com relação à usura, o fato de ela não se colocar em paridade com as demais religiões ou seitas, os anátemas, a teoria dos dois gládios, tudo isso e muito mais — que o liberal estudou en passant — é concebido em sua mente culpavelmente confusa como se fossem erros transitórios superados pela Igreja aggiornata pós-Concílio Vaticano II. Na melhor das hipóteses, são fatos historicamente explicáveis, mas indefensáveis em si. É como diz o Pe. Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire: para o liberal, a autoridade — mesmo legítima — coage a liberdade.
Assim, para não se ver na dificuldade de compreender em profundidade que o é o carisma do Magistério participado por Cristo ao Corpo Docente da Igreja (Papa e Bispos), o liberal católico simplesmente se põe a matizá-lo, diminuí-lo, adaptá-lo à sua consciência individual. Entre o impositivo Magistério ex cathedra, que excluía da sociedade cristã os hereges, e o dialogado Magistério ex Papamobile, que não raro tangencia várias heresias, prefere este último porque se enxerga nele perfeitamente. Portanto, o seu amor à Igreja fundada por Cristo é fake, pois na verdade embute, de maneira indisfarçável, uma espécie de autoglorificação. Trata-se, como dizia São Pio X na Pascendi, de um infiltrado altamente perigoso. Hoje talvez dissesse São Pio X que os infiltrados são os tradicionais.
Para termos uma pálida idéia de como o liberal católico pode chegar a odiar o Magistério tradicional da Igreja, citemos o caso de Lord Acton, que tentou impedir de todas as formas a proclamação — durante o Concílio Vaticano I — do dogma da infalibilidade papal, mobilizando meio mundo para tanto. Acabou sendo incluído no Index, mas não por isso, e apesar de depois aceitar a contragosto o dogma, sem jamais entendê-lo em suas premissas teológicas. Por trás das posições de Lord Acton estava a tal da liberdade liberal e um conceito de poder deveras questionável. Podemos dizer, sem medo de errar, que se escondia ali um feroz antipapismo, ao modo ockhamista.
A ojeriza à filosofia escolástica, que o liberal conhece de orelhada, diz muito mais do seu estado mental que de qualquer outra coisa. A conclusão se impõe quando constatamos que o seu nível de conhecimentos nesta matéria é primário. Se o liberal católico lesse os Doutores da Igreja e os filósofos cristãos clássicos com a mesma voragem com que lê os pensadores políticos e economistas liberais, seria um teólogo imbatível! Mas ele teve a alma seduzida pelo naturalismo, e, como dizia o Cardeal Billot, passa a aplicá-lo em suas teorias nos âmbitos religioso, moral, político e econômico. O liberal católico não quer ver que o laicismo é uma exigência da liberdade de consciência, na forma dúbia como a concebe.
Poderíamos escrever livros sem fim sobre o caráter deletério do liberalismo para o catolicismo. Mas muitos outros já o fizeram, com maior ou menor competência. Neste contexto, aproveito para recomendar novamente o recém-lançado livro Liberalismo e Catolicismo, do Pe. Augustin Roussel, que enumera alguns pontos importantes — embora não concorde eu com tudo o que ali diz Roussel, numa obra que precisaria de algumas atualizações, dadas as novas conformações do liberalismo católico surgidas nos últimos dez anos. Mas, para quem pretende ter uma idéia dessa contraposição radical, vale a pena a leitura.
Como se deduz do que foi dito acima, numa perspectiva de base metafísica o ato de escolha é a epifania da liberdade, mas, se feito fora da ordem devida, acaba tornando-se o seu aguilhão. Se, portanto, destacamos que o liberalismo é a recusa dos princípios da ordem do ser, agora fica evidente que, encarnado no católico liberal, ele é também uma recusa dos fins.
Ou, diríamos nós em linguagem tomista, é o uso dos meios com vistas a um mau fim.
P.S. Como eu disse anteriormente, este texto foi motivado por um escrito de Joel Pinheiro, colaborador da Dicta&ContraDicta, mas a resposta não se dirige à pessoa dele, pois resume, em linhas muito gerais, o que penso sobre o liberalismo e que inviabiliza qualquer diálogo. Como eu disse, são premissas absolutamente opostas.
Quanto a eu ter evitado nos últimos tempos entrar em polêmicas no Contra Impugnantes, isto provém do fato de que hoje estou convicto de que, se algum papel este espaço tem, é o de divulgar a filosofia e a teologia de Santo Tomás de Aquino sem matizações modernistas. O mesmo procedimento adotamos em todas as publicações da Sétimo Selo, do Angelicum e, agora, nos livros a ser publicados pela editora É, na coleção Medievalia, da qual serei o coordenador: mostrar o Doutor Comum da Igreja tal qual é.
Quanto à crise da Igreja pós-conciliar, creio que somente por um milagre extraordinário ela pode resolver-se. Ademais, parto de uma premissa que é lugar teológico em matéria opinável (ou seja, aquela sobre a qual o Magistério não se manifestou): o reinado do Anticristo pressupõe o esfacelamento do poder espiritual da Igreja, que São Paulo chama de "abominação da desolação" ou grande apostasia. E como não se chega a tal estado num salto, a inacreditável situação atual — que o católico liberal se recusa a ver na hediondez de suas causas — parece preparatória para esse reinado maligno.
Esta é apenas uma opinião, uma leitura particular dos "sinais dos tempos". Por ela se deduz que não sou milenarista.
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