segunda-feira, 25 de março de 2013

Saiu do forno o "Protréptico"

Sidney Silveira

Nasceu o filhote que, dentro de brevíssimo tempo, estará à venda nas principais livrarias do Brasil. "Exortação aos Gregos", de Clemente de Alexandria, é a segunda obra da Coleção Medievalia. A primeira foi o recém-lançado clássico "Questões Disputadas Sobre a Alma", de Santo Tomás.

Eis o texto da contracapa do livro do mestre da Escola de Alexandria :

"Erudição a serviço da fé. Esta epígrafe serve perfeitamente para toda a obra de Clemente de Alexandria, mas se adapta com particular ênfase a este "Protréptico", notável chamado à conversão dirigido por um Padre da Igreja aos gregos de sua época – mas também a homens de todos os tempos.

A tradução desta importante obra pela professora de Grego Clássico Rita Codá, do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, é um grande serviço para os que se interessam pela história da filosofia e da teologia no Ocidente. Nela o leitor de língua portuguesa consegue vislumbrar o estilo de rara beleza literária de Clemente, forjado na Escola de Alexandria.

Com 'Exortação aos Gregos' – até então inédita entre nós –, a Editora É dá mais um passo rumo ao seu objetivo de formar novas gerações de leitores familiarizados com textos clássicos importantes. A trilogia que se inicia com a presente obra (sendo as outras duas o "Pedagogo" e os "Strómata") é "catequese" na melhor acepção da palavra: instrução a viva voz, que, no caso de Clemente, cumpre o seguinte plano: primeiro exorta, depois educa e por fim ensina".

domingo, 24 de março de 2013

Certeza moral e crise da Igreja

Sidney Silveira
Quando a consciência de um homem é assaltada por dúvidas positivas em matéria grave, qualquer ação é, em si mesma, ilícita — como ensinam os bons manuais de Teologia Moral. Isto pelo seguinte fato: quem leva uma ação a cabo com consciência duvidosa a respeito de sua própria licitude aceita, temerariamente, a possibilidade de ofender a Deus e ao próximo. Noutras palavras, em caso de dúvida ou impossibilidade de chegar a uma certeza absoluta, é necessário reunir elementos suficientes para a inteligência alcançar o estado que os grandes tratadistas católicos chamam de certeza moral. Antes disso, convém não iniciar nenhuma ação.
Esse tipo de certeza é próprio das ocasiões em que se torna impossível chegar a certezas especulativas apoiadas em princípios intrínsecos indubitáveis, como são os que nos levam às certezas matemáticas ou metafísicas, por exemplo. A licitude da ação dependerá, pois, do fato de a consciência apoiar-se em princípios reflexos ou extrínsecos decorrentes dos princípios intrínsecos. Em síntese, os princípios reflexos são assim chamados pelo fato de que lançam uma luz indireta e parcial sobre a ação, mas em grau suficiente para lograr-se a certeza moral na ordem prática. Ressaltemos que a luz, neste caso, não dissipa de todo as trevas especulativas, mas é suficiente para o homem empreender a ação. Analogamente, é como a luz bruxuleante de uma vela que, embora não ilumine o caminho com perfeição, o faz em nível suficiente para o homem poder seguir em frente sem tropeçar.
Eis alguns critérios encontráveis em Santo Afonso de Ligório e outros tratadistas de moral:
Ø  Em caso de dúvida, é preciso considerar atentamente as normas gerais.
Ø  Em caso de dúvida, é preciso julgar pelo que ordinariamente se praticou ao longo do tempo.
Ø  Em caso de dúvida, deve-se pressupor a validez do ato.
Ø  Em caso de dúvida, é preciso orientar-se pelo que, na prática, parece ser mais seguro.
Ø  Em caso de dúvida, é preciso considerar se o ato em questão favorece ou contraria a lei e os princípios da ordem moral.
Ø  Em caso de dúvida, convém colher a opinião de pessoa douta ou sábia na matéria.
Ø  Etc.

Com tais bússolas um homem se nutre de razões suficientes para chegar à certeza moral. E aí, sim: tendo-a no horizonte, habilita-se a empreender a ação de forma lícita mesmo quando erra. Esta última advertência não nos custa fazer pelo simples fato de que a especificação do ato moral não se dá pelo resultado prático da ação, mas pela intenção do agente. É esta que define se a ação foi boa ou má, justa ou injusta. Assim, um professor imbuído da reta intenção de ensinar a matéria, mas que por alguma razão acidental não consegue, é moralmente mais digno que o professor negligente que, numa frase fortuita, acaba sem querer passando determinado ensinamento ao aluno.
Em breves palavras, todo homem tem a obrigação de empregar os meios possíveis para chegar a uma consciência verdadeira e reta antes de obrar, sobretudo nas ocasiões de extrema gravidade. Só assim se pode alcançar a certeza moral que lhe servirá de critério mais ou menos seguro para agir. Portanto, se a perplexidade de qualquer situação se impõe à consciência de uma pessoa — seja em razão do escândalo, seja em razão de contrariar o bom senso, seja em razão de favorecer o mal em detrimento do bem, seja em razão de ir contra a lei, etc. —, é dever dela se munir de critérios que a conduzam à certeza moral. Caso contrário, o pecado de omissão é gravíssimo.
Esta é, a propósito, a situação de pessoas cuja covardia se reveste do molde da falsa boa consciência, esta mesma que as faz acusar temerariamente quem não se mantém no marasmo, como elas. Em verdade, com total incerteza moral alegam agir com prudência e movidas por amor a um bem maior; infelizmente, trata-se da chamada prudência da carne — tipificada, em sentido próprio, não pelo amor ao bem, mas pela hesitação culposa entre o bem e o mal, pelo temor mundano de ferir susceptibilidades ou perder algum benefício adquirido.
Muitas dessas pessoas boazinhas deixam escapar um afetado esgar de nojo ao ler as críticas construtivas de quem, tomando como critério a Tradição, o Magistério e a prática bimilenar da Igreja, aponta as absurdidades que a vem corroendo nas últimas décadas. Absurdidades doutrinais, pastorais, litúrgicas, canônicas, magisteriais, dogmáticas e políticas. Ora, como esses bons moços desconsideram muitos dos critérios que poderiam levá-los a julgar a situação presente munidos de uma certeza moral, acabam por se tornar acusadores daqueles cuja ação se transforma no incômodo espelho diante do qual as suas consciências remordem a si mesmas. Na prática, as acusações que engendram são mera autodefesa psicológica, mecanismo típico da neurose.
Pois bem. Uma das acusações dessa gente de tão bom coração e ilibada índole é a seguinte: os “tradicionalistas” são sedevacantistas práticos, pessoas movidas por um orgulho insano manifestado pela desobediência em que caíram. No que nos diz respeito, como o ônus da prova é de quem acusa, desafiamos estes eruditos conhecedores da doutrina católica a provar isto com razões suficientes — e com a devida associação da teoria a exemplos práticos. Tipo assim: seria desobediência sedevacantista apontar publicamente a absurdidade do discurso do Papa Francisco em prol de uma Igreja pobre e para os pobres? Essa opinião do Papa é porventura magisterial? Tem ela a intenção declarada de se impor aos fiéis católicos como doutrina a ser seguida? Divergir dela é, por acaso, desobediência? Etc.
Apenas aconselhamos a estes homens cuja  habitual prudência é fechar os olhos para não ver, e tapar o nariz para não sentir eventuais odores nauseabundos, a estudar muito bem antes de dar razões à sua desrazão, ou seja: antes de se lançar à demonstração cabal de que somos uma espécie de "sedevacanista prático".
Se porventura forem dialeticamente degolados, sirva-lhes de consolo que o terão sido com e por amor. O mesmo amor à Igreja que eles alegam em sua defesa ao acusar moralmente o próximo.
P.S. Escolhemos este breve vídeo do falecido Prof. Orlando Fedeli não apenas porque subscrevemos integramente o que ali se diz, mas também porque o trecho em que ele menciona D. Hélder Câmara é muitíssimo a propósito para ilustrar o momento presente.

terça-feira, 19 de março de 2013

Pauperismo: a velha humildade herética — e o momento atual


“O católico que coloca questões políticas à frente das doutrinais é o sujeito que concedeu indulgência plenária à sua própria estupidez”.
Sidney Silveira
A exibição histriônica da humildade deixa, ipso facto, de ser humildade. Isto pelo simples fato de que a humildade é, antes e acima de tudo, o ato interior da vontade pelo qual alguém refreia o afã de ser louvado e reconhecido, ao mesmo tempo em que se imbui de um notável espírito de serviço. Mas aqui vem a pergunta decisiva: qualquer serviço? Não. Um milhão de vezes, não! Os demônios, por exemplo, servem a Lúcifer — o superior deles na hierarquia satânica — não porque sejam humildes, pois, como ensina Santo Tomás, a obediência de uns a outros é tirânica. Em suma, entre os demônios a concórdia na maldade não procede da amizade, a qual pressupõe o amor que lhes falta, nem do espírito de humildade, mas do seu ódio aos homens e à justiça divina.[1] A coincidência deles no mal se dá por meio de uma agônica submissão dos menos poderosos aos mais poderosos.
Ratifiquemos tudo isso com poucas palavras: nem todo servir é humildade. Há um servir que é soberba pura, cupidez, engano, vontade de poder e de supremacia despótica sobre as demais pessoas. Vamos a um exemplo simples: quando comparsas obedecem ao chefe da quadrilha, o seu serviço nada tem de humilde, nem denota amizade ao líder: ele provém do maldoso desejo comum de obter bens de maneira ilícita, contrária à ordem da justiça. Aqui não existe o despojamento espiritual que caracteriza a humildade, muito menos o fim bom que a especifica, moralmente. Em síntese, a humildade é para o bem, por bem e com o bem, daí ser a rainha das virtudes cristãs, do ponto de vista da razão prática. Ademais, ela se baseia na submissão a Deus e no reconhecimento da nossa absoluta miséria perante o Altíssimo. Não é o caso de desenvolver neste breve texto o tema, mas deixemos registrado que um ateu humilde é mera contradictio in terminis, porque lhe faltam os motivos conformadores da humildade.
Estabelecido, pois, o princípio de que a humildade é um ato interior que radica na vontade, e de que nem todo serviçal é humilde, falemos agora de uma antiga forma de macaquear ou distorcer a humildade: associá-la exageradamente à pobreza material e ao serviço aos pobres. Essa velha heresia tem um nome: pauperismo. Foi condenada pelo Magistério da Igreja, e com toda razão. Segundo os seus propugnadores, a pobreza é o sinal distintivo da virtude evangélica, não sendo lícito possuir nenhum (!) bem material próprio, como também bens comunitários. Tal doutrina possui um viés notadamente gnóstico — ou seja, de aversão à matéria, como se esta fosse a distinção ontológica do mal —, e não por outro motivo foi pregada entre cátaros, valdenses e “espirituais” franciscanos que, na Idade Média, fizeram de tudo para destruir a autoridade do Papa e, por conseguinte, a força do Papado.
Imbuídos dessa falsa humildade que encobria a mais insana soberba, tais homens tentaram corroer os alicerces doutrinais da Igreja com incrível pertinácia, sempre lançando mão de astuciosos sofismas. O Papa João XXII, que a propósito canonizara Santo Tomás de Aquino, pôs fim aos exageros pauperísticos desses fanáticos fraticelli, ao condenar a sua posição como herética e totalmente contrária à verdadeira pobreza evangélica — a qual é voluntária, sim, mas jamais absoluta. Em verdade, esses fraticelli não eram animados por nenhum espírito fraternal, pois trabalhavam para matar um dos princípios que transformam em irmãos os homens marcados pela fé em Cristo: a obediência à autoridade do Magistério tradicional da Igreja. Eram, na prática, fratricidas espirituais que procuravam transformar um conselho evangélico em preceito, fazer dele um “dogma” fundamental, entre outras coisas porque eram estrondosos analfabetos teológicos.
Passados seis séculos e meio daquele período agitado em que se inicia o longo declínio da Cristandade, a chamada “opção preferencial pelos pobres” foi a expressão eufemística com a qual esta antiga heresia renasceu camuflada, no final da década de 60 do século passado, com o verniz do marxismo e o mesmíssimo ódio à autoridade (magisterial e jurídica) do Vigário de Cristo — assim como movida por uma ojeriza invencível ao caráter monárquico e hierocrático do Papado. Tratava-se, tanto na Idade Média como na época imediatamente posterior ao Concílio Vaticano II, de uma verdadeira sedição empacotada em formato de má-teologia, ou melhor: de diabolice com fumos de sabedoria teológica. Era o surgimento da funesta Teologia da Libertação (TL), direta ou indiretamente incentivada por clérigos vaticano-secundistas. Aqui não nos custa lembrar que Joseph Ratzinger patrocinou a publicação da tese de doutoramento de Leonardo Boff... Será que Ratzinger via hegelianamente em Boff um teólogo de futuro?
A disseminação desse joio marxista com o incentivo de homens influentes da própria Igreja passou despercebida pelos tolos e pelos “otimistas”, que sempre servem de fermento para as revoluções. A propósito, no caso do catolicismo, os otimistas cegos são adeptos do esporte radical de cair das nuvens: não dominando bem os princípios, são facilmente manipuláveis por quem os queira deturpar, e depois se mostram “chocados” — com ar de donzela  violentada — quando não dá mais para sustentar a sua cegueira voluntária. São massa de manobra bastante útil para o andamento da revolução que, há cinqüenta anos, vem autodemolindo a Igreja. É o caso de pessoas que, a esta altura dos acontecimentos, ainda acreditam no conto da Carochinha chamado hermenêutica da continuidade, e se recusam a enxergar que a desgraça atual está essencialmente ligada aos falsos princípios que inspiraram os textos do Concílio Vaticano II.
São exatamente estes católicos deveras tolerantes para com os desvios e as imprecisões doutrinais que parecem não enxergar a hidra marxista da TL, por trás do discurso do Papa Francisco a favor de uma Igreja pobre e para os pobres.
A estes, vale lembrar algo que deveria ser óbvio:
Ø  Não é papel da Igreja resolver o problema da pobreza no mundo. A função dela é salvar as almas, valendo-se para tanto dos seus carismas, do seu ministério, do seu Magistério, dos sacramentos, etc. É claro que os conflitos sociais e a injustiça tendem a ser minorados numa sociedade que aceita o Evangelho, mas isto nada tem a ver com a instituição de uma Igreja pobre e para os pobres.
Convém, ao contrário, que a Igreja seja institucionalmente rica e politicamente poderosa, para que não lhe faltem meios materiais para o exercício de seu múnus salvífico, e para que ela não seja constrangida pelos poderosos do mundo em sua atuação. A propósito, quando Platão — a certa altura da República — nos diz que, numa sociedade ideal, é conveniente a riqueza estar nas mãos de homens devotados às coisas do espírito (referindo-se ali aos filósofos), e não com homens cúpidos, ímpios ou aproveitadores, nos aponta o seguinte: mesmo o antigo paganismo tinha noção da hierarquia dos bens a ser custodiados, para que os alicerces sociais se mantenham de pé.
Portanto, não confundamos Cristo com Barrabás. A revolução de Cristo faz os Santos; a revolução de Barrabás faz os Stálins. Ademais, não sendo a pobreza em si um mal, nem muito menos um empecilho à salvação (o Evangelho inclusive nos aconselha a ela, para melhor seguimento de Cristo), é flagrante contra-senso pensar que a Igreja deva ser para os pobres. Ora, muito mais do que para os necessitados materiais, o seu trabalho deve voltar-se para os necessitados espirituais. É claro que isto não exclui o fato de que ela possa incentivar a criação de irmandades voltadas ao auxílio aos pobres, como sempre o fez, mas constranger ou reduzir a isto o seu papel é aberração, pura e simples.
A pobreza só é indigna fora dos princípios cristãos.

Francisco, o humilde “Papa dos pobres”?
Agora, muitas dessas pessoas que têm o hábito de se precipitar das nuvens estão se dizendo “chocadas” com o ecumenismo do Cardeal Bergoglio, eleito Papa Francisco; dizem-se temerosas de que a sua salada litúrgica, tão contrária à sacralidade, e tão ao estilo pós-conciliar, tome conta de Roma; escandalizam-se com a sua declarada intenção de que a Igreja seja pobre e para os pobres; com o seu constrangimento em dar bênçãos públicas, para não ferir a consciência dos não-católicos, como na ocasião em que agradeceu aos jornalistas que cobriram o Conclave, sem contudo deixar de lhes dizer que, crendo ou não, “todos são filhos de Deus” (até então, éramos filhos de Deus porque irmãos em Cristo, mas a nova fraternidade à moda da Revolução Francesa excluiu a filiação adotiva, a qual antes assumíamos apenas ao aceitar Nosso Senhor e Sua Igreja); etc.  
Não conseguem ver a perfeita linha de continuidade entre todos os Papas conciliares, que culmina no atual. Este, em pouquíssimo tempo de pontificado, já mostrou a que veio, e o mundo começa a amá-lo, a “adorá-lo”. E não por menos: trata-se do homem flagrantemente ecumênico na cúpula da Igreja, como o mundo quer; do homem que, alegando humildade, dispensa até os tradicionais paramentos papais e os chama de... carnavalescos! Do homem que é “humilde” porque anda de ônibus, cozinha a própria comida e caminha entre o povo. Ó, humildade, flor das virtudes cristãs, a que arremedo de si mesma te reduziram?
A propósito, ao ler por estes dias no Frates in Unum (e depois checar com outras fontes) as palavras que o Papa Francisco dirigiu, diante de algumas testemunhas, ao cerimoniário pontifício Mons. Guido Marini, enfatizando que “o tempo do carnaval acabou”, referindo-se aos paramentos tradicionais, não pude evitar as lágrimas, e foram muitas, muitíssimas. Mas não foram lágrimas de quem foi pego de surpresa, e sim de quem vê o caos instaurado de forma humanamente impossível de reverter — embora de Deus sempre possamos esperar o milagre de reapostolicizar a hierarquia eclesiástica, fazê-la perder os pruridos diplomáticos e as susceptibilidades baseadas na “liberdade de consciência”.
Os católicos tradicionais — chamados de “tradicionalistas” por seus detratores liberais — precisarão de uma dose suplementar de heroísmo para não sucumbir ao tsunami que desponta no horizonte. A hora é de provação. Serão inculpados ou acusados de ferir a “unidade” da Igreja, e em geral os acusadores serão pessoas que mal leram um manual de teologia (quanto mais o Magistério e os Santos Doutores), e por isso ignoram que a unidade cristã só se dá na integralidade da fé. Serão caluniados por pessoas que acham que a defesa de artigos da lei natural (como as questões relativas ao aborto, etc.) basta para a unidade cristã, visto considerarem o aspecto político em primeiro lugar. Ocorre o seguinte: o católico que coloca questões políticas à frente das doutrinais é o sujeito que concedeu indulgência plenária à sua própria estupidez; dele poderíamos dizer shakespearianamente que faz da ignorância a melhor defesa. Mas não lhe respondamos; o melhor é calar perante quem confunde solidariedade com caridade, politicagem com esperança e opinião pessoal com fé.
Pois bem. Ao contrário do que pensavam Kierkegaard e Karl Barth, a fé não é um salto no absurdo, mas sim um salto na mais ofuscante luz, como dizia o Pe. Penido, eminente tomista brasileiro. E essa luz não é outra senão a da cruz. Ad lucem per crucem: a caminho da luz, pela cruz. Este é o dístico do cristão, que nada tem de bandeira ideológica ou política. E, num momento como o atual, ele deve ser o guia maior para os que amam a Igreja e a vêem tão dramaticamente desrespeitada. E não apenas pelo mundo, mas pelas próprias autoridades eclesiásticas.
Aos amigos tradicionais que porventura se sentirem constrangidos pelas difamações e detrações que, a partir de agora, hão de se multiplicar, entre as quais o doce apelido de "sedevacantista prático" é o mínimo, vale o conselho: lancem em rosto dos acusadores o “dogma” por eles defendido (implícita ou explicitamente) da intocabilidade da consciência individual. Esta mesma que o recém-eleito Papa Francisco tanto demonstra respeitar nos ateus, nos não-católicos e nos adeptos de outras religiões.
Mostrem a eles que vocês não podem contrariar as suas consciências católicas, pois a isto seria preferível a morte.
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1- Cfme. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.109.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Bom momento para estudar Garabandal


Sidney Silveira
Os acontecimentos recentes da Igreja apresentam-se como ensejo para reolharmos com especial atenção os extraordinários fatos sucedidos entre 1961 e 1965 (ou seja: em tempo coincidente com o do aggiornamento da Igreja operado pelo Concílio Vaticano II), na pequena aldeia espanhola de San Sebastián de Garabandal. Primeiramente porque o Santo Padre Pio — taumaturgo extraordinário — lhes deu crédito. Mas também, e sobretudo, pela enorme gravidade da mensagem de Nossa Senhora, que, entre outras coisas, dissera às quatro jovens videntes o seguinte:
Ø  A partir de então — e estávamos sob João XXIII —, haveria apenas mais quatro Papas antes da marcha do fim dos tempos (sendo o renunciante Bento XVI exatamente o quarto deles).
Ø  O fim dos tempos seria precedido de um Aviso, um Milagre e um Castigo sem parâmetro na história da humanidade.
É verdade que a Igreja não reconheceu oficialmente as aparições em Garabandal. Mas também não as condenou. Ademais, se associarmos Garabandal às reconhecidas aparições marianas de La Sallete, Lourdes e Fátima, teremos material suficiente para refletir sobre o abominável momento presente, em que a débâcle doutrinária ganha caráter materialmente universal, no seio da Igreja. Só os cegos voluntários se recusam a ver, assim como os católicos tomados por um senso de naturalismo prático absolutamente contrário à fé e tão criticado pelos Doutores e pelo Magistério.
Seja como for, o estudo destes eventos fora do comum é algo pertinente. A morte extática do Padre Luis María Andreu, teólogo de talento que, a princípio, se mostrara cético quanto às aparições, e o milagre da Hóstia materializada na boca de Conchita González diante de muitas pessoas (há um famoso registro fotográfico acerca disto), entre outros eventos, são indicativos suficientes para refletirmos sobre as nossas próprias vidas e, como pediu Nossa Senhora em Garabandal, para fazermos penitência e visitarmos com a maior freqüência possível o Sacrário. Sempre com confiança inabalável em Deus, ou seja, imbuídos da verdadeira esperança cristã, que, segundo Santo Tomás de Aquino, tem como objeto formal a Deus auxilians, quer dizer: ela traz a certeza do socorro divino para aqueles que amam ao Senhor e procuram guardar os Seus mandamentos, mesmo em meio a quedas e momentos de fraqueza e tentação.
Trata-se, como dizia o próprio Doutor Comum, de uma certeza de tendência (“spes certitudinaliter tendit in suum finem”), que obviamente não se refere à nossa própria salvação — pois isto seria pecado de presunção gravíssimo —, mas uma certeza que, sob a luz da fé, indica estarmos na direção do fim querido por Deus. Esta é a esperança dos que crêem em Cristo e dos que crêem a Cristo, e, como explica o nosso Vieira no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, "crer em Cristo é crer o que Ele é, crer a Cristo é crer o que Ele diz".
Advirtamos: este é um momento propício para estudarmos com prudência Garabandal, pois, como se disse, sobre esta aparição a Igreja ainda não bateu o martelo, e só Deus Pai sabe a hora. Não se trata, pois, de fazê-lo ao modo de um procedimento adivinhatório, mas por simples obediência a Cristo — que nos diz  na Sagrada Escritura para estarmos atentos aos sinais dos tempos que precederão à Parusia. A  postura contrária a esta é a do otimismo beócio que oculta uma fé tíbia e mascara a demasiada confiança nos negócios humanos.
É abundante na internet o material sobre as aparições de Garabandal e a mensagem da Virgem acerca do Aviso, do Milagre e do Castigo que antecederão ao fim dos tempos.  

Uma pergunta catolicamente chata e, para muitos, inoportuna: o que esperar de um ecumenista convicto à frente do Papado?



“Tua perdição é obra tua, Israel. Tua força é obra Minha”.
(Os. XIII, 9)
Sidney Silveira
Um bispo católico que se ajoelha diante de um pastor evangélico para receber o “dom” da sabedoria ecumênica manifesta, com tal ato, algum tipo de humildade? E outra: é verdadeira humildade calar a verdade da fé no “diálogo” com outras religiões ou seitas?
À primeira pergunta podemos responder dizendo o seguinte:
1-  se Cristo nada tem a aprender com Nicodemos, muito menos terá a aprender com Lutero e seus descendentes; e
2-  a verdadeira humildade, antes e acima de tudo, é uma reverência pela qual o homem se submete a Deus, como ensina Santo Tomás. Nas palavras do Doutor Comum, o homem deve submeter-se ao próximo única e exclusivamente naquilo em que nele há de semelhança com Deus (cfme. Suma Teológica, II-II, q.161, art. 3, resp), e não no que nele haja de humano ou de não cristão — ou ainda de falsamente cristão, o que é pior.
Neste último caso, não é humildade submeter-se; ao contrário, é anuência ao mal ou rebaixamento indevido diante de um inferior. A título de analogia, seria mais ou menos como um expert em metafísica concordar reverentemente com qualquer neófito saído dos cueiros que fala uma bobagem sem tamanho, apenas para não ferir as suas juvenis susceptibilidades.
À segunda pergunta podemos responder dizendo o seguinte:
1-  a regra da humildade cristã é a verdade evangélica, da qual a Igreja Católica é a única custodiadora, por missão divina. Esta é a doutrina bimilenar, quer gostemos, quer não. Quer o mundo a aceite, quer não. Por isso a Igreja sempre foi um signo de divisão e os líderes de seitas cristãs sempre foram chamados pelos Papas a se arrepender e a retornar à Santa Madre Igreja — isto até que batesse o vendaval do Vaticano II e inaugurasse um virulento ecumenismo totalmente anticatólico... intra muros Ecclesiae!
2-  O único diálogo possível é o apostólico: convertam-se à religião verdadeira fundada por Cristo, o Verbo encarnado. Simples desta forma: sim, sim, não, não.
Ai, que coisa chata e antiquada! Ai, que coisa antimoderna e antidialogante! Ai, quanta intolerância!
Pois bem. O recém-eleito Papa Francisco tem um passado de grande propagador do ecumenismo — que, dentre os crimes contra a fé, talvez seja o pior de todos, por seu caráter insidioso e corrosivo. Então repitamos a pergunta do título, incômoda para muitos no momento presente: o que esperar de um Papa ecumenista convicto? Resposta: o milagre de uma conversão à doutrina católica integral.
É possível? Sim. É provável? Não, pois a história da Igreja está aí para nos mostrar que o modo ordinário de Deus agir não é este.
A hora é grave. Gravíssima. Um divisor de águas se aproxima e parece que todos teremos de tomar uma posição clara em breve — inclusive muitos dos chamados conservadores “linhas-médias”.
Movido pelo Espírito Santo, o Papa Francisco contrariará o Cardeal Bergoglio? Ou dará razão a Leonardo Boff, para quem ele é a grande esperança do estabelecimento de uma Igreja pancristã mundial, ou seja, a abominação da desolação no lugar santo?
Logo saberemos.
P.S. Queríamos, de verdade, postar algo muito, muito diferente — num dia tão festivo para a maioria dos católicos. Mas estas são indagações que, a nosso ver, todo católico verdadeiramente amante da Igreja deveria fazer na hora presente. Além de rezar sobretudo pelo Papado, ao qual o Papa deve servir. Isto por um motivo bem simples: nenhum Papa está acima do Papado.

sábado, 9 de março de 2013

Promoção de Páscoa de obra-prima de Santo Tomás


Sidney Silveira
O pessoal da editora É me informa que está fazendo uma promoção de Páscoa da obra-prima Questões Disputadas Sobre a Alma, de Santo Tomás, que sairá por R$ 47,20 até 01/04/2013. Aproveitem: o preço já estava bom (para a excepcional qualidade da edição), e agora ficou ainda mais atraente.

quinta-feira, 7 de março de 2013

O mérito sobrenatural: é lícito desejar que Hugo Chávez vá para o inferno?


Sidney Silveira
Compreendo perfeitamente o meu amigo Carlos Nougué, quando diz — a propósito da morte de Hugo Chávez — que não são nada católicas expressões como “esse desgraçado vai arder no inferno”, “o capeta veio resgatar sua alma”, entre outras do mesmo tipo, que temos visto aos milhares pela internet, ditas por freqüentadores de Missa.
Para um católico, a salvação e a perdição são um grande mistério. Todos os que, ao longo dos séculos, tentaram resolvê-lo de forma definitiva acabaram caindo em alguma heresia. Ademais, nada menos caridoso do que desejar que alguém vá arder no inferno, mesmo sendo o pior dos homens. O contrário, sim, é católico: desejar a salvação mesmo dos maus, para que se manifeste gloriosamente a misericórdia divina.
Aos que, portanto, estão imbuídos de tão malignos votos, lembramos: teologicamente, ninguém merece o céu. O mérito do sangue de Cristo na cruz resgatou-nos, e não os nossos méritos. O Bom Ladrão recebeu a graça de morrer em amizade com Deus, não obstante a sua vida de crimes confessados na hora final.  
Desejar que alguém vá para o inferno é desejar o mesmo que o demônio, inimigo da nossa salvação; matéria de confissão, muito mais do que os pecados da carne. É lícito, isto sim, desejar que seja feita a justiça humana, mesmo com a pena de morte. Mas não é coisa digna de um católico algo tão contrário ao que configura a vida verdadeiramente cristã.
Lastimável!

terça-feira, 5 de março de 2013

Feita a pequena correção ao texto sobre a renúncia de Bento XVI


Sidney Silveira
Antes de tudo, reitero o meu agradecimento ao Pedro, que observou um erro no artigo inicial a respeito do conceito de consciência segundo o (então) Cardeal Ratzinger. Feita, pois, a correção, a forma final do texto ficou sendo esta.
Relendo agora com cuidado quadruplicado tanto o artigo do teólogo alemão como o texto publicado no Contra Impugnantes, percebi algo curioso: aquele erro afetava o texto materialiter, mas não formaliter — como diria um escolástico. Em palavras simples: ele se referia a um elemento que não interferia na conclusão em absolutamente nada.
Mas o interessante é que a coisa se apresentou ainda mais dificultosa, e podemos resumi-la assim: mesmo dominando os termos liberdade e consciência, Ratzinger concluía contrariamente aos elementos de que dispunha. A propósito, este sestro é típico em filósofos (ou teólogos) com formação hegeliana — tese, antítese e síntese. Mas, neste caso, a síntese sequer subministrava qualquer base para o ponto central do seu artigo, que era o seguinte: todo o poder do Papado, em sua opinião, ancora-se na consciência.  São palavras literais, escondidas no meio do texto.
Portanto, as mudanças feitas não apenas não afetaram a conclusão, mas a tornaram mais substanciosa, porque ficou mais claramente demarcada a diferença entre o pensar tradicional católico e o modernista. Este último vê a dicotomia autoridade x consciência individual como um problema, mesmo quando parece dizer o contrário. A ponto de, no caso do então Cardeal Ratzinger, estabelecer-se a premissa de que, sem consciência, não haveria Papado (palavras também literais). Ora, por mais que sejamos hermeneuticamente benevolentes, não podemos aceitar tal proposição senão como uma fórmula equívoca que dá margem a muita confusão doutrinal.
Uma vez mais, fica o meu agradecimento ao leitor crítico que apontou, com razão, a incongruência num tópico do texto inicial — e convido os nossos leitores a reler o artigo Renúncia simbólica ao poder espiritual, num mundo sem fé.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Correção tópica no texto sobre a renúncia de Bento XVI

Sidney Silveira
Apontar em privado um erro com educação, ponderação e espírito crítico é mais ou menos o que chamamos de correção fraterna — sobretudo se o engano se deu com relação a assunto de importância. Diz-se que, certa vez, Santo Tomás foi insultado por um aluno em sala de aula, mas não lhe deu nenhuma resposta; ficou em silêncio. Ao voltar para o mosteiro, seus confrades disseram mais ou menos o seguinte: “Frei Tomás, por que o senhor não deu uma lição naquele jovem?”. Teria então respondido o Boi Mudo: “Se eu tivesse feito isto na frente dos colegas dele, nós o teríamos perdido para a verdade”. No dia seguinte, chamou-o num canto, explicou a questão com santa paciência e ganhou um discípulo.
Pois bem. Pedro Sette-Câmara — que tem traduzido com competência vários livros, como por exemplo  Coração Devotado à Morte, de Roger Scruton, para a Editora É —, após ler o texto publicado no Contra Impugnantes sobre a renúncia de Bento XVI tomou a iniciativa de me fazer, por e-mail, reparos no tocante a um tópico específico: a noção de consciência do teólogo Ratzinger. Torno este fato público porque o assunto é relevante, e também por respeito aos muitos leitores do blog.
Mea culpa. Com simplicidade, Pedro demonstrou-me que a noção de consciência do então Cardeal não consistia exatamente na que eu apresentara. Em verdade, naquele artigo, Ratzinger expunha a contraposição autoridade x consciência como dois pólos de um problema, e não considerava propriamente “infalível” a consciência, no sentido por mim aludido.
Em vista disso, refarei agora a parte do texto atinente a este ponto que lhe serviu de mote, cortando algumas passagens e inserindo outras. Quanto ao restante, ou seja, as questões canônicas, teológicas e morais implicadas na renúncia de Bento XVI, mantenho integralmente o que ali está — assim como os aspectos históricos implicados na renúncia de Celestino V. Tudo sem tirar nem pôr, com ênfase particular para o que simbolicamente representa — no mundo com a configuração do atual — a renúncia de um Papa pelos motivos alegados.
Fiquei particularmente feliz ao ser corrigido por uma pessoa com quem tenho divergências com relação à crise atual da Igreja. Tomo isto como uma lição, e agradeço a Deus. Portanto, muito obrigado, Pedro. Longe de me aborrecer, sou-lhe sinceramente agradecido pelo e-mail. Afinal, ser corrigido é o melhor favor que alguém nos pode fazer.
Em breve republicarei o texto, com a exclusão de uma parte dele e a inserção de outra.

Eis o "Protréptico", de Clemente de Alexandria — segundo livro da Coleção Medievalia


Sidney Silveira
Está saindo do forno o segundo livro da "Coleção Medievalia", da Editora É: o Protréptico, de Clemente de Alexandria, em edição bilíngüe (grego/português). O livro foi traduzido pela querida Rita Codá, professora de Grego Clássico no Mosteiro de São Bento do Rio e de Latim no Colégio Pedro II. A breve apresentação a esta importante obra é minha.

Depois da obra-prima Questões Disputadas Sobre a Alma, de Santo Tomás — que abriu a coleção e está à venda nas principais livrarias do país — é com alegria que anuncio estar na iminência de vir à luz o livro de Clemente de Alexandria.

sábado, 2 de março de 2013

Renúncia simbólica ao poder espiritual, em um mundo sem fé


Problemas teológicos, canônicos, filosóficos e morais resultantes da abdicação do Papa Bento XVI


“A mediocridade é o justo meio hesitante entre o bem e o mal”. (Garrigou-Lagrange)

Sidney Silveira
“A consciência apresenta-se como o baluarte da liberdade frente às limitações impostas pela autoridade”, escrevia o então Cardeal Ratzinger em 1991, referindo-se a uma controvérsia no meio católico. Nesse escrito bastante conhecido, o teólogo alemão afirmava: “Estão contrapostas [nesta disputa] duas concepções de catolicismo. De um lado, uma compreensão renovada de sua essência, que explica a fé cristã a partir da liberdade e como princípio da liberdade, e de outro, um modelo superado, ‘pré-conciliar’, que sujeita a existência cristã à autoridade”. Nas palavras do Cardeal Ratzinger, a moral da consciência e a moral da autoridade pareciam, em tal contexto, eliminar-se mutuamente, sendo a consciência a norma suprema que o homem deve seguir, mesmo quando o faz voltar-se contra autoridade. O teólogo alemão citava em tom crítico a fórmula — fiel à tradição filosófico-teológica moderna — de que a consciência é “infalível”.
Diz mais aquele texto de Sua Eminência Reverendíssima, o Cardeal: naquela visão, a autoridade (leia-se, literalmente, Magistério da Igreja) poderia até falar sobre moral, mas no máximo caberia a ela propor elementos para a formação dos juízos autônomos da consciência, a qual teria sempre a última palavra. Mas o ponto decisivo, para o que nos interessa apontar, vem do seguinte trecho: “Vivemos de uma maneira completamente nova a força da recordação [da fé] e a verdade da palavra apostólica. O verdadeiro sentido da autoridade doutrinal do Papa reside em que ele é o guardião da memória cristã. O Papa não impõe [a fé] desde fora, senão que desenvolve a memória cristã e a defende. (...) Sem consciência não haveria Papado. Todo o poder do Papado é o poder da consciência”.[1]
Se levarmos a premissa ratzingeriana às últimas conseqüências, veremos que, na sua concepção, a autoridade eclesiástica jamais se impõe pelo ensino da verdade, que os fiéis recebem ex auditu e à qual anuem por obediência à autoridade de Cristo, em cujo nome falam os Papas e o Magistério; ela no máximo dialoga com a consciência individual autônoma. O subjetivismo desta posição é patente, e não a troco de nada os anátemas quase desapareceram, tanto neste como nos Pontificados anteriores que remontam a João XXIII.
Respondamos a isto dizendo que a consciência não se forma por partenogênese. Ela não é infalível nem autônoma, pois, como demonstrara Santo Tomás, ela é regra regulada e não regra regulante, e para ser infalível infalíveis e perfeitas deveriam ser as espécies inteligíveis humanas, o que não é correto dizer, porque somos incapazes de esgotar a verdade. Para nós, pobres mortais, a verdade (mesmo a científica) é uma assíntota e comporta graus: assim, definir o homem como bípede vertebrado sem escamas é menos verdadeiro do que defini-lo como animal racional; embora ambas as proposições estejam certas, uma alcança o âmago da essência humana, a outra mira aspectos acidentais, em sentido metafísico. Traduzamos tudo isso num axioma de nossa lavra: ciência limitada, consciência imperfeita. Portanto, a expressão de que o Papado depende da consciência é absolutamente imprópria. O Papado, na doutrina tradicional, depende diretamente do carisma outorgado por Deus. A sua aceitação ou não pelos indivíduos é que, sim, pode radicar na consciência.
A consciência humana precisa ser formada e começa a sê-lo justamente pela autoridade. Mas que autoridade? A primeira delas é dos mestres e professores que nos ensinam as verdades em suas matérias. Afirmemos, pois, sem nenhum prurido eufemístico: a contraposição autoridade/liberdade é falsa, sobretudo quando se entende erroneamente a consciência como “baluarte da liberdade”, como advertia Ratzinger, visto que esta última reside na vontade — apetite intelectivo do bem — e não na consciência, pois os veredictos desta são falíveis. O problema é que, apesar de dominar as premissas, o teólogo alemão não supera a própria dicotomia que denuncia.
É assim em qualquer caso:

Ø  Um soldado não forma a sua consciência militar questionando os generais, pois, se tivesse elementos e capacidade de julgar e repudiar cada ordem dada pelo superior, cairia o Exército.
Ø  Um menino não forma a sua consciência cristã contestando o catequista.
Ø  Um matemático não molda a sua consciência argüindo, desde o princípio, os experts na matéria.
Ø  Um teólogo não “discute” com Santo Tomás de Aquino nos primeiros anos de Seminário.
Ø  Um candidato a filósofo não refuta Aristóteles na primeira aula; somente depois de adquirir solidíssima formação ele deve atrever-se a fazê-lo, e com todo o respeito, toda a deferência devida ao Estagirita, chamado pelos medievais de O Filósofo.

Repitamos, pois, a seguinte regra, para guardá-la bem na memória: a consciência começa a se formar por anuência à autoridade, e esta é balizada pelo conhecimento da verdade. Neste sentido, todo magistério autêntico exige submissão do intelecto. Assim, se o professor ensina que 2+2=4, a nossa consciência não é “livre” para considerar que o resultado desta adição é 5. Que nos perdoe, uma vez mais, o teólogo Ratzinger, mas a sua concepção de liberdade e de autoridade (mantida durante todo o período em que foi Pontífice) é herdeira dos liberalismos da melhor cepa.
Pois bem. É justamente por dever de consciência que seguiremos à risca o conselho do então Cardeal Ratzinger: mesmo que as autoridades digam o contrário, não pecaremos contra a nossa consciência católica omitindo verdades em matéria gravíssima e em momento histórico tão delicado. Iremos, pois, contra a boiada, sem endeusar a própria consciência como se fosse uma Bastilha inexpugnável, pois ela é falível, porém muito seguros de tê-la formado no estudo continuado da obra de Santo Tomás de Aquino, Doutor Comum da Igreja.
Advirta-se que o dever de consciência, quando é necessário voltar-se publicamente contra alguma autoridade, se aplica nos casos de erros patentes em matéria grave; então o silêncio seria pecado de omissão. Assim explica Santo Tomás, no fabuloso De Veritate, o fato de São Paulo confrontar São Pedro in faciem, ou seja, contrariar o Papa frente a frente, diante de todos. Trata-se de ocasiões excepcionalíssimas, como a atual — fruto maduro das mudanças radicadas nos ambíguos textos do Concílio Vaticano II. Desde então, o Magistério da Igreja assumiu uma inédita linguagem resvaladiça aberta a várias interpretações, em contraposição aos documentos anteriores da Tradição bimilenar, cuja simplicidade e forma direta de se expressar não davam margem a qualquer dúvida sobre o seu próprio conteúdo.
Elegias mundanas a uma abdicação
A nossa primeira observação diz respeito à renúncia ao ministério petrino feita pelo Papa Bento XVI. É a seguinte: o ofício de um Papa não se exaure em sua humanidade, por se tratar do homem que, como Vigário de Cristo, é a suma ponte com a divindade. Se tivermos, pois, a clara consciência de que o Papado não é ofício político ou diplomático, e sim um poder instituído pelo céu, saberemos tratar-se de uma realidade espiritual que, dada a sua universalidade, abarca todas as demais coisas no tocante ao fim último do homem: Deus. Trata-se, pois, de um poder omniabarcante, em relação ao qual todos os demais poderes estão ordenados. Se estes se voltam contra o fim último, a Igreja militante, cuja cabeça visível é o Papa, tem autoridade para intervir. “Não terias nenhum poder sobre mim se não tivesse sido dado do Alto”, ensina Cristo a Pilatos. Esta é a tradicional doutrina dos dois gládios, tão repudiada pelos modernistas católicos denunciados por São Pio X e por seus herdeiros contemporâneos.
O Papa é o homem a quem estão dirigidas as palavras ditas pessoalmente por Nosso Senhor a Pedro: “Tudo que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o que desligares na terra será desligado no céu”. Homem a quem é conferido o carisma sobrenatural da infalibilidade no exercício de seu poder de ensinar (potestas docendi), no tocante a questões de fé e costumes. Homem que possui o pleno poder de jurisdição na Igreja universal. Por isso, dizia o ab-rogado Código de Direito Canônico de 1917: “O Romano Pontífice legitimamente eleito, ao aceitar a eleição, recebe de imediato — por direito divino (iure divino) — a plenitude da jurisdição suprema”.[2]
Somente num catolicismo que, desgraçadamente, perdeu ou distorceu a noção de direito divino se poderia conceber a hipótese de haver um Papa emérito, sem a jurisdição suprema que o distingue, como agora nos querem impor; isto dá margem a confusões magisteriais, canônicas e teológicas tremendas, como se não bastassem as que já nos assolam. Somente num catolicismo naturalista se pode elogiar a decisão humana de um Papa de abdicar à sua autoridade magisterial e ao supremo primado apostólico, sob alegação de cansaço por conta da idade — em descontinuidade com a Tradição e a prática da Igreja, como diz o historiador Roberto de Mattei. Isto não obstante o seguinte (digamos sem meias palavras): não nos surpreende tal decisão pelos motivos alegados, vinda de quem possui do Magistério uma noção tão tímida perante as consciências individuais.
A propósito, no artigo intitulado Considerações sobre o ato de renúncia de Bento XVI, o mesmo historiador indaga: “O bem-estar físico nunca foi critério de governo na Igreja. Se-lo-á a partir de Bento XVI?”. Ora, o próprio Roberto de Mattei nos chamava a atenção, quando do anúncio da renúncia histórica de Ratzinger, para o fato de que as faculdades intelectuais do Papa abdicante estavam plenamente íntegras, e o estado de sua saúde era “geralmente bom”, de acordo com o porta-voz da Santa Sé, Frederico Lombardi. Ademais, carregar a Cruz até o fim, com confiança em Deus, é o heroísmo que caracteriza o cristão. Por isso há deveres de estado para leigos solteiros, leigos casados, sacerdotes, monges, freiras, bispos e... para o Papa!
Exemplifiquemos da forma mais didática possível, até para ficar claro que não estamos contrariando o princípio Romanus Pontifex a nemine iudicatur, pois o ato da renúncia de um Papa, como ensina o Código de Direito Canônico, não precisa ser aceito nem mesmo pelos Cardeais, dada a supremacia do poder papal. Portanto, não nos resta senão respeitosamente aceitá-lo, acatá-lo, mas o legislador canônico não quer com isto dizer que não possamos discordar dele. Vamos lá: se um marido, alegando cansaço, tristeza ou qualquer outra coisa, deixa habitualmente de cumprir para com a sua esposa o débito conjugal, cujo efeito próximo é aplacar a concupiscência, estando ambos em plenas condições de consumar o ato, peca. Se o leigo solteiro deixa de guardar a castidade, peca. Se o monge ou a freira quebram os votos perpétuos, pecam. Se os bispos não ensinam o que é conforme à Tradição, pecam. E algo análogo serve com relação ao Papa: há deveres inalienáveis que ele é chamado a cumprir. Somente um catolicismo aggiornato pode imaginar que um Papa é impecável, alguém transformado em Anjo imaculado ao assumir a sua missão. Somente um catolicismo água-com-açúcar pode imaginar que um Papa não é passível de críticas de nenhum tipo, mesmo quando feitas em vista do bem comum da Igreja e tendo como base a Tradição. Nunca foi assim.
Ademais, a história está aí para nos mostrar Papas moralmente indignos do supremo múnus que lhes foi confiado. Eles passaram e a Igreja permaneceu, apesar dos seus pecados. Papas simoníacos, nepotistas, gananciosos e imorais. Leiam a monumental Histoire Universelle de l’Église Catholique, do Pe. Rohrbacher, para ter a mínima noção de que há Papas que Deus nos impinge para cumprir os Seus inescrutáveis desígnios. Ora, para compreender como Deus se serve de males em vista de bens infinitamente superiores, é preciso ter em mente que não há comensurabilidade possível entre os pecados humanos (mesmo de um Papa) e a Providência Divina. A vontade de Deus sempre se cumpre, mesmo quando os homens falham.
A propósito, a coexistência de dois Papas indicava desde sempre que, na verdade, um deles era antipapa e a ameaça de cisma era iminente. Como a imaginação modernista é magicamente infinita, agora deparamos com uma circunstância impossível de resolver, jurídica ou teologicamente, sem cair nalguma contradição, considerados os princípios configuradores do poder papal: o fato inédito de haver dois Papas vivos, um com a jurisdição suprema e o outro emérito, sem ela. Isto afora a circunstância de que, tradicionalmente, só o Papa reinante usava as vestes totalmente brancas, representativas da pureza espiritual do cargo que lhe foi confiado. Agora há dois homens de branco aludindo de maneira simbólica ao Pontificado. Por sua vez, os que renunciaram anteriormente — com toda a razão! — se tornaram ex-Papas ainda em vida.
Primeira confusão decorrente da presente situação: como era de se esperar, já começa a circular nos meios progressistas o murmúrio de um reinado papal duplo, ou seja, de um possível governo bipartido em que o Papa emérito continuaria a exercer o ministério petrino “espiritualmente”. Alerta o vaticanista Robert Moynihan, em artigo publicado por esses dias: as recentes palavras do Papa Bento XVI deixam em aberto a interpretação de que, no futuro, poderia haver uma dupla regência petrina. E isto é só o começo, caros: o modernismo católico tem o condão de transformar qualquer escrito ou ato solene em algo anfíbio, aberto a infinitas interpretações divergentes. É exatamente isto que o padre Álvaro Calderón — maior tomista vivo — chama de “consenso plurânime dos teólogos”, ou seja: uma babel em que todos detêm a verdade justamente porque não há verdades em sentido estrito, apenas visões particulares.
Reiteremos: a decisão de criar a distinção de “Papa emérito”, deixando-nos perante dois sucessores de Pedro vivos sob o título de Papa, embora um deles tenha abdicado formalmente ao poder, é uma monstruosidade doutrinal. Nenhum outro Papa renunciante virou emérito, até pelo risco de acarretar um cisma, razão pela qual Bento XVI se viu na contingência de jurar obediência e reverência ao futuro Papa, ciente dos problemas implicados na situação (mas aparentemente sem imaginar que alguém pode não julgar assim e propor algo contrário aos fins da Igreja. Há precedentes). Perdoem-nos as almas cândidas, mas recusar-se após a renúncia a ser chamado de Sua Santidade, Bento XVI, e vestir-se como religioso comum, isto sim, seria um ato de humildade. E não nos venham dizer que se trata de juízo temerário ou desrespeitoso; é evidente.
Até mesmo  exegetas do novo Código de Direito Canônico, como na coleção organizada por A. Marzoa, J. Miras e R. Rodríguez-Ocaña, responsáveis pelo Comentario Exegético al Código de Derecho Canónico, editado em vários volumes pela EUNSA, teriam dificuldade de explicar tão anômala novidade. Ensinam eles que existe íntima conexão entre o munus petrinum e o poder do Papa — que é a um só tempo ordinário, supremo, pleno, imediato e universal. Portanto, a existência de dois Papas, sendo um deles emérito, fato não previsto pelos melhores canonistas, cria vários dilemas a resolver.
Por exemplo:
Ø  Que tipo de assistência do Espírito Santo o ex-Papa, ou melhor, o Papa emérito, passa a ter?
Ø  Qual o seu papel no governo da Igreja, mesmo estando recluso?
Ø  Sendo ainda Papa, resta-lhe algum vestígio ou elemento, mesmo que adventício, do supremo poder papal? Se sim, em que sentido?
Ø  Em relação ao novo Papa, como fica a plenitudo potestatis pontifícia (expressão usada pelos canonistas para explicar que o Papa possui a totalidade do poder que Cristo delegou à sua Igreja)?
Ø  Mil etcéteras!

Na prática, com a renúncia pelos motivos alegados, a percepção do mundo (este mesmo que, antigamente, a Igreja chamava virilmente à conversão) é de que se trata de um governo político humano como outro qualquer. E mais: com a inaudita fórmula “Papa emérito”, presta-se um desserviço à compreensão da real dimensão monárquica (e divina) do Papado, abrindo-se flancos para, em breve, algum Cardeal ter a linda idéia de propor um governo colegiado ou repartido entre dois ou mais Bispos de Roma. Se isto não representa um precedente perigoso para a criação de uma Igreja bicéfala, além de um enfraquecimento ainda maior do caráter do Primado de Pedro — já tão diminuído pela colegialidade vaticano-segunda —, não sabemos mais o que pode significar.
No momento em que a nova ordem mundial mostra a sua ojeriza à Igreja e ao Papado, com manifestações públicas as mais vis de repúdio e desrespeito aos católicos; no momento em que a Igreja é humilhada por escândalos de pedofilia, homossexualismo e por evidências de corrupção política e financeira, direta ou indiretamente decorrentes da débâcle doutrinal; no momento em que forças internacionais fazem pressão para a Igreja mudar o seu Magistério; no momento em que, entre os próprios católicos, leigos ou sacerdotes, muitos não crêem no ensinamento tradicional; em suma, num momento gravíssimo como o presente, contemplada de um ponto de vista não mundano, a renúncia de um Papa — sem menção evidente a nenhum motivo sobrenatural — ganha o caráter de simbólica deposição do poder espiritual, que se omite diante da desgraça (em sentido teológico) reinante.
O que virá em seguida, não sabemos. Mas sabemos que só um milagre de proporções gigantescas pode mudar o deplorável quadro eclesiástico atual. A propósito, temos diante de nós a profecia de La Salette, que nos diz “apenas” o seguinte: os sacerdotes serão cloacas de impureza e Roma se transformará na sede do Anticristo. Será agora, com o próximo Papa? Será daqui a 50 ou 100 anos? Repitamos: é impossível saber e nos cabe rezar para cumprir-se a vontade de Deus de forma a iluminar as consciências dos mornos, dos tíbios, dos que aderem a uma cegueira voluntária. Seja como for, o fato é que todos somos chamados pelo próprio Cristo, e também por São Paulo, a ler os sinais dos tempos.
Cada um chegue à sua conclusão.
A lenda do santo desertor
Acrescentemos outra coisa, antes de encerrar. Não deixa de ser irritante, e em alguns casos ridícula, a postura de alguns padres e também de diletantes metidos a teólogos de dizer que o católico verdadeiro não pode criticar a abdicação do Papa Bento XVI — agora na prática ex-Papa, apesar dos malabarismos canônico-dialéticos das autoridades romanas.  E mais: afirmando com ar de sapiência infusa que este foi um “santo ato de coragem e humildade”. Desculpem-me, amigos: acordem da letargia! Saiam da aurea mediocritas de que falava Horácio, aquela atitude que macaqueia o justo meio das virtudes, sem o ser, pois nas sábias palavras de Garrigou-Lagrange a mediocridade é o justo meio hesitante entre o bem e o mal. Assim, se por acaso ainda não temos todos os elementos para emitir um juízo definitivo, todavia nós os temos em grau suficiente para, à luz da Tradição, considerar essa abdicação, da maneira como foi feita, o ato solene que presta um desserviço ao Papado, mesmo inserindo-se no plano da Divina Providência. Como Bento XVI não mudou o discurso até o fim, somente um claro sinal dos céus que o justificasse poderia dar-lhe outra dimensão. Será que o teremos?
Não nos custa aqui aludir a um critério ensinado por grandes teólogos ao falar da importância do conselho como dom do Espírito Santo: assim como a virtude da prudência não se identifica com a pura inação, que aconselha sempre a não agir e a não empreender coisas de importância, a fim de evitar incômodos ou dificuldades —  pois muitas vezes o prudente é avançar, realizar, mover-se ao ataque quando a situação o exige —, assim também os juízos temerários não se dão  apenas nas críticas, sobretudo quando o temerário é calar, omitir. Eles podem materializar-se nos elogios irresponsáveis, aduladores ou cínicos, em ocasiões nas quais o juízo da razão prática não se baseia em nenhuma evidência plausível. Ora, se o critério para não incorrer em juízo temerário, neste caso, é justamente considerar a regra próxima da fé, que é o Magistério, assim como a História da Igreja, temos maior quantidade de elementos para criticar do que para louvar esta renúncia, da maneira como foi feita.
Portanto, o elogio beócio e babão é mais irresponsável e condenável do que a crítica construtiva — e mostremos isto lembrando do ocorrido com Celestino V, único Papa que, a exemplo de Bento XVI, renunciou por vontade própria; todos os demais abdicantes o fizeram premidos por diferentes situações, políticas ou eclesiais. Vale mencionar Celestino V justamente porque alguns, para encomiar o ato de Bento XVI, ficam por aí citando o fato de Celestino V ter sido um Papa santo. Sim, caros, é verdade, mas não foi santo enquanto Papa. Expliquemo-nos melhor.
Primeira observação: dentre os Papas santos, Celestino V é uma espécie de justificada exceção. A sua bula de canonização nos informa que ele foi canonizado como Pedro de Morrone, e não como Celestino V, ao contrário dos demais Papas santos, que foram canonizados com o seu nome papal — como São Gregório Magno, São Leão Magno, São Pio V, São Pio X, etc. Para compreender os porquês disto, remontemos às conclusões de numa série de textos inacabada, sobre Bonifácio VIII (que em breve retomaremos), cujas fontes foram todas apontadas nos respectivos artigos:
Ø  Bonifácio VIII não foi o articulador da renúncia de Celestino V;
Ø  Bonifácio VIII não mandou assassinar Celestino V;
Ø  Bonifácio VIII não mandou torturar Celestino V, que, segundo fontes primárias, se manteve em “honesta reclusão”, levando vida contemplativa até morrer em 19 de maio de 1296;
Ø  Celestino V foi eleito Papa — no que tange aos negotia secularia dos quais Deus muitas vezes se vale, para fazer cumprir os Seus desígnios — graças aos ardis de um político inescrupuloso e à pressão de fanáticos franciscanos de uma linha “espiritualista” e sectária condenada pelo Magistério, dado o seu falso messianismo à Joaquim de Fiore;
Ø  Celestino V, no curtíssimo tempo de seu pontificado, concedeu benesses indevidas a membros da Cúria apaniguados da corte de Carlos II;
Ø  Celestino V colocou injustificadamente homens de Carlos II nos Estados pontifícios;
Ø  Celestino V foi subserviente ao poder político por cujo influxo se elegera Papa, chegando a nomear cardeais indicados por Carlos II e indo residir, por ordem expressa do rei, não em Roma e sim em Nápoles, onde poderia ser melhor manipulado;
Ø  Celestino V queria, como Papa, continuar vivendo vida de anacoreta, algo absolutamente incompatível com as exigências do cargo;
Ø  Logo após a renúncia formal de Celestino V, a família Colonna e os “espirituais” franciscanos tentaram responsabilizar Bonifácio VIII pela abdicação do Papa anterior, e começaram a espalhar que a renúncia fora canonicamente inválida;
Ø  A encarniçada campanha sedevacantista desses sequazes ditos “espirituais” materializou-se na publicação de inúmeros panfletos satíricos contra Bonifácio VIII. Nesses textos, entre inúmeras outras coisas dizia-se que Celestino V continuava Papa, sendo Bonifácio VIII um anticristo usurpador.

Continuaremos a falar de Bonifácio VIII quando retomarmos a série, mas vale dizer uma coisa que nenhum historiador sério da Igreja ignora: a canonização de Celestino V se deu em circunstâncias altamente duvidosas de pressão política da parte do rei Felipe, o Belo. Neste contexto, advirta-se o seguinte: nem de longe estamos afirmando que Pedro de Morrone não tenha sido santo. Também não estamos afirmando que a sua inclusão entre os santos reconhecidos pela Igreja se tenha dado por um processo inválido. Mas não paira a menor sombra de dúvida de que, como ressalta Luigi Tosti a certa altura de sua Storia di Bonifazio VIII e de’ suoi tempi, Pedro de Morrone foi elevado aos altares graças ao empenho tenaz dos inimigos de Bonifácio VIII, os quais por força queriam declará-lo “mártir” e, ao mesmo tempo, inculpar Bonifácio VIII por sua morte. Graças a Deus, o frágil e subserviente Clemente V não chegou a tanto: canonizou o ex-Papa como Pedro de Morrone e não como mártir, e sim como Santo Confessor.
Como a Igreja, ao canonizar alguém, propõe o Santo como modelo a ser imitado, o simples fato de que Celestino V não foi canonizado com o seu nome papal indica que não é um modelo de Papa, embora possa sê-lo com relação a suas virtudes piedosas ou a quaisquer outros fatores de sua vida. Curiosamente, Dante — a quem tantas críticas fazemos, com relação à sua idéia de Igreja — o “condena” ao Inferno (Il gran rifiuto, no famoso verso). Seja como for, caros, se querem elogiar a renúncia de Bento XVI, não o façam aludindo a Celestino V, mascarando o intuito consciente ou inconsciente de, em breve, propor o Papa Ratzinger como mais um beato, a exemplo de João Paulo II e, agora, Paulo VI, cuja beatificação desponta no horizonte...
Por fim, não se ofendam as almas sensíveis ao ler uma crítica firme como esta. Nem Bento XVI nem João Paulo II se escandalizariam com ela; afinal, em diferentes alocuções elogiaram publicamente ao sedevacantista medieval Jacopone de Todi — que os franciscanos consideram beato, com celebração em 25 de dezembro no Martirológio da Ordem dos Frades Menores. E o fizeram apesar de saber o seguinte: Todi é o notório autor das mais injuriosas, infames e imorais sátiras jamais escritas contra um Papa. No caso, Bonifácio VIII, chamado por Todi (e por outros) de coisas como demônio, sodomita, satanista, blasfemo, sacrílego, ladrão...
Quanto a nós, com total respeito à pessoa do Cardeal Ratzinger — hoje Papa emérito, neste incrível "achado" da nova teologia —, apenas estamos apontando para o significado de sua renúncia, à luz de uma visão não mundana, não modernista, não covarde.
Com relação ao que virá a partir de agora, Deus nos proteja e à Sua Igreja. 
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1- “Oggi noi, proprio nella crisi attuale della Chiesa, stiamo sperimentando in modo nuovo la forza di questa memoria e la verità della parola apostolica: più delle direttive della gerarchia è la capacità di orientamento della memoria della fede semplice che porta al discernimento degli spiriti. Solo in tale contesto si può comprendere correttamente il primato del Papa e la sua correlazione con la coscienza cristiana. Il significato autentico dell’autorità dottrinale del Papa consiste nel fatto che egli è il garante della memoria cristiana. Il Papa non impone dall’esterno, ma sviluppa la memoria cristiana e la difende. Per questo il brindisi per la coscienza deve precedere quello per il Papa, perché senza coscienza non ci sarebbe nessun papato. Tutto il potere che egli ha è potere della coscienza”.
2- “Romanus Pontifex, legitime electus, statim ab acceptata electione obtine, iure divino, plenam supremae iurisdictionis potestatem”, can. 219. Entre as várias incongruências do novo Código de Direito Canônico para com a Tradição está a lastimável supressão da expressão “direito divino” no cânon que trata da eleição do Romano Pontífice (can. 332). O giro antropocêntrico instaurado pelo Vaticano II, e por tudo o que doutrinalmente se lhe seguiu, alcançou o Direito Canônico, cujo novo Código inverte os pólos: até então, o direito divino era o ponto analogante máximo em relação a todos os demais direitos, pois se funda no direito absoluto de Deus sobre todas as criaturas, dada a hierarquia ontológica entre elas e a supremacia metafísica d'Ele. Agora, o direito divino é que passa a ser o direito analogado em relação ao direito positivo humano.